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Quarta-feira, 9/5/2018
O Vendedor de Passados
Marilia Mota Silva

"Tudo o que era sólido se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente forçadas a encarar com serenidade sua posição social e suas relações recíprocas." Karl Marx, Manifesto Comunista


"O Vendedor De Passados", romance do angolano, de ascendência brasileira e portuguesa, José Eduardo Agualusa, publicado em 2004 pela editora Gryphus, é um livro fininho e divertido, mas essa primeira impressão engana. Não é uma leitura simples. Cada palavra, cada imagem vem carregada de simbolismos, reflexões, sentimentos que ficam repercutindo em nossa mente, pedindo uma leitura mais atenta.

A história é narrada por Eulálio, uma lagartixa que vive nas frestas e teto de uma casa antiga, e dali acompanha a vivência do seu único habitante, o albino Felix Ventura. Felix Ventura inventa e vende árvores genealógicas, com antepassados nobres, gente de estirpe. Minucioso, cria enredos e biografias, fornece até mesmo fotos de ancestrais ilustres. Para esse trabalho, além de seus arquivos, ele conta com uma vasta biblioteca, herança de seu pai adotivo. Seu pai e seu avô eram alfarrabistas. Ele mesmo nasceu entre livros:

O mulato Fausto Bendito Ventura, alfarrabista, filho e neto de alfarrabistas, encontrou numa manhã de domingo, um caixote à porta de casa. Lá dentro, estendido sobre vários exemplares d' A Relíquia de Eça de Queirós, estava uma criturinha nua muito magra e deslavada, com um cabelo de espuma incandescente, e um límpido sorriso de triunfo".


“Eça foi o meu primeiro berço”
, Felix costuma dizer com orgulho.
Eça, perfeita escolha: nenhum escritor traduziu melhor que ele a cultura portuguesa tradicional, seus mitos, a misoginia, o catolicismo, as castas sociais, a hipocrisia, cultura que é também o nosso berço, como ex-colônia.

Fausto Bendito Ventura, pai de Felix, era um bon-vivant que se orgulhava de seu parasitismo. Quando lhe perguntavam o que fazia nos dias úteis, ele respondia com humor: para mim todos os dias são inúteis, e eu os passeio. Acabou se tornando alfarrabista por distração. Tinha herdado do pai a casa em que vivia repleta de livros, de todos os assuntos e épocas. À tarde ele se sentava na varanda da casa, e quem estivesse interessado entrava, e ia examinar as pilhas de livros colocadas ao acaso no chão. A vida mansa dos Ventura teve sua origem no bisavô de Felix, traficante de escravos entre Angola e Brasil.

Os clientes de Felix vem da nova burguesia angolana, emergentes dos anos de guerra civil que seguiu-se à independência do país. São empresários, ministros, fazendeiros, generais, gente com o futuro assegurado, mas sem um passado condizente com seu novo status. O albino vende-lhes esse sonho singelo. Traça-lhes a árvore genealógica. Dá-lhes as fotografias de avôs e bisavôs, cavalheiros de fina estampa, senhores do tempo antigo.

Até que chega um sujeito, que parece vindo de outro tempo, ou do estrangeiro, que quer mais do que um passado novo. Quer também o presente, uma nova identidade, com documentos e raízes angolanas. Felix, relutante a princípio, vence seus escrúpulos, quando imagina o que poderá fazer com os dez mil dólares que o estrangeiro lhe oferece.

E assim nasce José Buchmann*, que assimila de tal maneira sua nova identidade, que a ficção começa a se confundir com a realidade.

Mas é inútil, o passado está vivo e vem furiosamente em seu encalço; como as minas enterradas no solo de Angola.

Quando se tornou independente de Portugal, em 1975, Angola ficou exposta à luta pelo poder entre as facções ideológicas que marcaram o século passado. China, Russia, Cuba e Estados Unidos plantaram minas no solo de Angola. Ninguém sabe, ao certo, quantas minas foram enterradas no chão de Angola. Entre dez e vinte milhões. Provavelmente haverá mais minas do que angolanos (p. 11)

Nada é de graça nesse livro, tudo é simbolismo. A casa que o albino divide com a lagartixa é como um navio cheio de vozes subindo um rio na noite escura. O jardim, na frente da casa, é maltratado e árido, protegido apenas por duas palmeiras muito altas e altivas. Há uma sala de visitas e a biblioteca. Essa é a face voltada para as visitas, para o público. Para se conhecer a verdadeira Angola, para se chegar à intimidade da casa, os quartos, a cozinha, o quintal verde e fresco, cheio de árvores frutiferas, há que atravessar um túnel longo úmido e escuro . Os nomes dos personagens também, como já vimos, são uma narrativa em si. A Velha Esperança, a avó que faz todo o trabalho pesado, levando o neto amarrado às costas, é o pilar que sustenta a casa. Angela Lucia é o anjo de luz, o anjo vingador, a que aceita e ama Felix, branco e negro como Angola. O Edmundo Barata dos Reis, barata dos reis, ex-agente do governo, que vive na sarjeta, mas continua fanático e fiel a sua ideologia.

Esses são apenas alguns aspectos notáveis do livro. Não falei dos sonhos da osga, da beleza do texto, de sua cadência e poesia. E vou me referir a mais um apenas, por sua atualidade, hoje até mais que em 2004.
Falo da mentira que se transformou num dos pilares da construção social. Mentira sempre existiu, naturalmente, mas não como hoje. Não nesse nível de cinismo. Ou paranóia. A noção pós-modernista segundo a qual a verdade não importa, o que importa é a narrativa impregnou nossa cultura e ganhou status de dogma. Não importa a realidade, não importam videos exibindo as mentiras, não importa a objetividade dos fatos. Importa a emoção, aquilo em que decidimos acreditar.

No livro, há cenas hilariantes de personagens que se agarram à ficção sobre si mesmos com tal convicção que passam a agir em função dessa nova narrativa, distorcendo a realidade como os espelhos no apartamento da fictícia Eva Miller. Fictícia?

A ironia atinge paroxismos como, por exemplo, no caso do padeiro que pagou muita propina para acelerar a legalização de suas padarias, e com isso, começou a frequentar as casas dos ministros e generais. Bastaram dois anos para ser ele mesmo nomeado Secretário de Estado para a Transparência Econômica e Combate à Corrupção. Mais um pouco e se tornou Ministro da Panificação e Laticínios. Empolgado com sua árvore genealógica novinha em folha, ele agora se prepara para escrever um livro que, na verdade, será escrito por Fausto Ventura: "História de um verdadeiro combatente", onde absolutamente tudo é mentira, e mesmo assim o "autor" se entusiasma, sinceramente convencido: Assim que A Vida Verdadeira de Um Combatente for publicada, a história de Angola ganhará outra consistência, será mais História. (p.139)

Esse parece ser um fenômeno prevalente hoje no mundo. A presidência de Trump é um bom exemplo. No último domingo, 29 de abril, o New York Times trouxe um artigo cujo título basta para ilustrar esse ponto: Porque os apoiadores de Trump não se importam com suas mentiras. (Why Trump Supporter's don't mind his lies).

Ainda assim, como disse Eulálio, a sábia lagartixa que tem memória de muitas vidas: A única coisa que em mim não muda é o meu passado: a memória do meu passado humano. O passado costuma ser estável. Está sempre lá, belo ou terrível, e lá ficará para sempre.

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* Buchmann, seria "homem dos livros" em alemão, ou seria uma homenagem a Gonçalo Tavares, outro excelente escritor angolano, que tem um personagem com esse nome em seu romance "Aprender a Rezar na Era da Técnica".

Marilia Mota Silva
Washington, 9/5/2018

 

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