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Quinta-feira, 21/6/2018
O dia em que não conheci Chico Buarque
Elisa Andrade Buzzo

Não estamos mais assistindo a aqueles tempos ao vivo, embora partes do passado encontrem-se acessíveis em recortes; de todos os modos, tudo isso talvez tenha sido uma tentativa inconsciente e frustrada de esgarçar o tempo. Como se possível fosse subi-lo, tal qual lençol, tal qual lona de circo, e nessa transparência se embrenhar como quem evade um louco território disponível embora adormecido.

Os ídolos já estão velhos, mas enxutos, mumificados numa coisa indescritível, uma gosma de juventude, uma casca eterna de relevância paira sobre eles; haja o que houver, sempre haverá um palco negro e cortinas pesadas a separar ficção e realidade e sobre ele se incidirá uma luz tremeluzente. Envelhecida sou eu, indo a cada vez mais para o futuro e deles me distanciando, pois quero aquilo mesmo que tardiamente possa fazer alguma vez parte; seja como for, ainda há esta ou aquela antiga plateia com paredes descascadas e teto mofado, na qual o veludo roça no mais íntimo sintoma do agora.

Antes de Toquinho aparecer, já se escuta a intensidade de sua batida forte nas cordas: as primeiras notas, das quais o público demora a se aperceber, claras, pesadas, metálicas, ásperas. Os integrantes do Queen têm uma vitalidade, uma presença sempre nova no palco. Brian May é um espectacular pássaro gigante de asas e penacho prateados, Roger Taylor um senhor rock and roll tilintando com fúria em sua cozinha estrondosa. E Chico Buarque tem olhos tão claros, cegos; o que eles afinal veem através daquela multidão pungente, sangrada? Alguns acordes fazem seu rosto retorcer, numa espontaneidade particular ainda que diante de seus adoradores.

Se não tenho o passado desses homens, suas impossíveis notas vibrantes e frescas, também não sou proprietária do hoje. O contato foi passageiro, uma sorte de comunhão coletiva, possível pelo entendimento de que precisam da plateia para sua arte viver. Ou seria a plateia que para sobreviver precisa da arte dos homens? Aquela precisa reiterar para si a existência daqueles que estão continuamente a cantar, há décadas, antes mesmo de termos nascido.

E o que eles me trazem talvez seja uma característica minha e não deles. Artistas de primeira linha que são, fazem reverberar algo fantástico em cada um de nós, e que não sabem, nem querem, nem podem saber. Nós também não sabemos ao certo o que é. Se calhar vem daí essa tristeza melancólica: Solta, nada pertencer, a nada me unir estreitamente.

Elisa Andrade Buzzo
Lisboa, 21/6/2018

 

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