|
Terça-feira, 31/7/2018 Pra que mentir? Vadico, Noel e o samba Renato Alessandro dos Santos É uma pena, e imagino a tristeza do biógrafo com o que deve ter estranhado tão logo pôde sentar-se para ler o que escreveu, em um daqueles momentos pelo qual todo autor espera; isto é, abrir uma cerveja ou servir-se de um xícara de café, após a peleja toda com o texto, enquanto se vai percorrendo o que fica, finalmente, impresso. Uma pena mesmo, porque o livro é de enorme beleza gráfica: páginas em várias tonalidades de cinza; iconografia constante; escolha de tipologias, de cores, como aquele insinuante amarelo da capa sobreposto ao preto e ao branco, e de outros detalhes que fazem a alegria de quem se interessa por livros não apenas bem escritos, mas bem feitos, tipograficamente falando. O que houve então? Imagino que nas mãos de um bom revisor de textos tal problema não teria ocorrido, e um editor que tivesse mergulhado na empreitada, sem pressa de emergir, também não teria sido ruim. Porém, mesmo com todos esses percalços, por iluminar a vida de Vadico, é inegável a importância deste livro de Gonçalo Junior - até porque todos esses problemas podem ser resolvidos na edição seguinte, corrigindo erros de concordância, de digitação, de coesão, de coerência, enfim, do que possa turvar a língua de Camões e de Criolo. Fora isso, ficam os acertos: a dedicada descida vertical da empresa, trabalho árduo por que passa todo pesquisador; o título – da célebre canção criada por Vadico e Noel; a arte final pontuada de nostalgia; o olhar atento ao microscópio, que apontado para o biografado vai ampliando sua importância na história da música brasileira. Vadico escondeu, por anos, o coração fraco que, possivelmente, o impediu de alcançar consagração em escala mundial, quando, naquele que pode ter sido seu maior erro, recusou convite do amigo Vinicius de Moraes para cuidar da orquestração da peça Orfeu da Conceição (1956), musical criado pelo poetinha e que apresentou ninguém menos que Tom Jobim à jornada da bossa nova, que vinha se insinuando por ali. Por que Vadico recusara o convite? Muitos não souberam à época, mas o coração, esse comboio de cordas, é mesmo feito para ser partido ou para partir, acompanhado da vizinhança, quando é chegada a hora da ave-maria. Ainda não era dessa vez, mas sempre haverá um preço acre a ser pago por quem, do coração, se descuida. Vadico e Noel, juntos, deixaram 12 músicas, como mencionado. Trabalho a quatro mãos; trabalho que legou obras-primas como “Feitiço da Vila”, “Conversa de botequim”, “Feitio de oração”, “Pra que mentir?”, dessas canções que alegram os ouvidos da gente. Referir-se a Noel como letrista parece pouco àquele que, se não fosse a música, vagamente teria sido médico; o mais provável é chamá-lo infalivelmente de poeta, tais eram as soluções espontâneas que encontrava para rimas, aliterações, assonâncias e trocadilhos que ficam pulando na imaginação de quem, ouvindo-o, se depara com elas. Morre o sambista e, do trabalho dos dois, restam apenas essas canções a enaltecer a memória de ambos: um marco a partir daqueles anos lendários em que nosso cancioneiro passou a ser saudado por gente como Pixinguinha, Geraldo Pereira, Assis Valente e tantos outros que, no choro ou no samba, deixaram músicas das mais expressivas. Gonçalo Junior segue à risca o ofício: pesquisa fontes esperadas (revistas, jornais da época etc.); dá crédito aos compositores após citar cada faixa; compara dados, certificando-se do que escreveu esse ou aquele biógrafo que, antes dele, trilhou a mesma estrada por onde trafegaram Vadico e Noel e, ao final de cada capítulo, geralmente, o autor antecipa o que virá pela frente, naquela que é uma forma eficaz para fisgar os leitores, feito folhetim: Assim, aquele ano de alegrias, 1956, chegou ao fim. Vadico tinha motivos para acreditar que sua carreira continuaria em ascensão. Estava feliz e escondia de todos que trazia no peito um coração que mais parecia uma bomba-relógio. Para piorar, fumava e bebia muito. Mas parecia bem. Até se meter em um dos mais rumorosos, desgastantes e polêmicos episódios da história da MPB. Uma briga das mais turbulentas, em que ele estava absolutamente sozinho e exposto no meio do salão. Tudo isso aconteceria em 1957. Não é de fazer qualquer um interessar-se em ler o que virá, para saber onde foi que Vadico se meteu? Foi o que fiz. Até aqui, era pouco mais que a metade da biografia. Restava pouco. Pelejei. Vieram as férias, e cheguei ao fim do livro. É essa outra metade que continua a resgatar a história de um sujeito honesto, decente, alcoólatra, notívago, zeloso de sua arte, amigo de todo mundo, salvo a briga com Almirante. Há o coração a bater desafinado, manco, sem harmonia, a bebida e o cigarro a servir feito um cantil a quem tem sede, a gravação de LPs valiosos hoje, porque raros e bem produzidos, como Festa dentro da noite(1959), volumes 1 e 2. O desfecho disso é, sem spoilers que tudo põem a perder, a morte, inevitável, que chega dentro de um táxi. Todas essas informações são reunidas por Gonçalo Junior com bastante eficiência, mas, por conta da sucessão de erros que surgem, daninhas ervas entre os canteiros, vale a pena torcer pela segunda edição do livro, certamente revisada, ou por um impossível recall dessa primeira, algo que imagino impensável, financeiramente, a uma editora ainda em busca de se firmar no mercado. A noite já caiu. Noel não toca mais. É sábado ainda. Hora de ver um filme ou de ir a algum lugar. Ou de não fazer nem uma coisa nem outra. Melhor é ficar com Vadico e Noel, com o samba e a esposa. Pra que mentir? Nota do Autor: Renato Alessandro dos Santos é editor do site tertuliaonline.com.br. Renato Alessandro dos Santos |
|
|