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Quinta-feira, 7/2/2019
Algo de sublime numa cabeça pendida entre letras
Elisa Andrade Buzzo

Se tem coisa mais sem graça do que alguém segurando um celular? Como um brinquedo idiota, como símbolo do tédio e marca do desinteresse pelo mundo próximo? Não nos aproximamos demais de alguém que mexe em um afoitamente, nem existe um ensejo de diálogo. Os polegares vidrados e entortados como os de bebês gordos, um riso absorto e ridículo em sabe-se lá quais interesses distantes? Por outro lado, a hipótese do contrário, alguém não saber mexer no celular bem (ou fingir não saber por algum tipo obscuro de modéstia), é uma das coisas mais ternas e interessantes dos últimos tempos.

Se no uso imoderado do celular o mundo próximo é menosprezado, o mundo distante é prezado, com vias de para perto trazê-lo e quem sabe compartilhá-lo, ao se bebericar quaisquer páginas escritas. Mais: há nesses tempos tecnocratas algo mais sublime do que uma cabeça pendida sobre umas letras, com a ponta agradável de um dedo, porque a ponta do dedo de todo mundo deve ser macia e boa, tocando a superfície unidimensional de uma determinada linha, e, depois de imergir nisso que é invisível dentro do outro, da imaginação e da teoria, voltar com um ah! o rosto ao público e desse informe delimitar uma história, contando-a com um método e um prazer revelado não no riso distendido, mas no canto esticado da ponta do olho, como um tique de cumplicidade provocativa.

Há um quê de alteridade benevolente nesse contar que dialoga, e não se limita aos encantos coloridos de lousinha mágica, alternando-se do papel à pessoa, porque a todo olhar é pertencente a qualidade de uma seta virulenta, meneando em sua íris purpurina o alvo dum destino indefinido. As próprias verdades costumam estar arraigadas em si, ainda que de nada se saiba; há algo que se esfacela, uma volubilidade inconsequente onde quer que se tente escorar.

Existe alguém assim tão soft, que mal existe palpavelmente, que é como um blur de pessoa, algo como um alguém descido acidentalmente do mundo das ideias no mundo do celular sensível. Uma explicação palpável para tal situação: a imaginação é que formata esse especial tipo de ser, que enternece, mas não existe, a não ser no nosso bobo fantasiar. Mas, e se ele então existe, se se vive nesse outro lado desfigurado, ele se reconfigura em física forma, e segura um livro, um conjunto de papéis ou um rendado vianense, e dedilha com uma delicadeza inapercebida a ponta das folhas de um livro, um coração, ou um maço mesmo de folhas muito importantes.

Então, repassa pelos cabelos esses mesmos dedos elásticos, como um pente orgânico, um órgão vivo e útil, passando também com eles pelo nariz, pelo pescoço como se puxasse as cordas de uma lira, e vivendo e sendo, táctil, pudera já concreto, sem se dar conta de nada que se possa haver como seu espelho. Na esfera do sublime, arcanjos não portam um celular indolentemente, antes debicam, já exaustos, poesia.

Elisa Andrade Buzzo
Lisboa, 7/2/2019

 

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