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Domingo, 7/4/2019
Nos braços de Tião e de Helena
Renato Alessandro dos Santos

Música caipira é o que meu pai mais gosta de ouvir. É sempre uma lembrança sorridente da infância: o pai acelerando a Brasília nas ondulações de terra batida de Santa Fé do Sul. O sol ainda brilha nesta hora: Milionário e José Rico no rádio do carro, o automóvel subindo e descendo e a vertigem e a suspensão da próxima onda deixando-nos sorrir de contentamento. Lembro-me de tudo isso enquanto digito este texto e, nos alto-falantes do notebook, Tião Carreiro e Pardinho dão uma aula de viola.





Pagode

Na cidade, pagode é o ritmo de roda de samba com camisetas de mangas curtas e pulseiras de ouro, além de cerveja e conversa mole. Na roça, pagode é o que Tião Carreiro conseguiu escrever com as cordas de sua viola caipira, lá nos longínquos anos 60, quando misturou samba rural, coco e calango de roda. A roça ainda pulsa nos arpejos cheios de ritmo inconfundível que o violeiro imortalizou em músicas como “Chora viola”, “Pagode” e “Pagode em Brasília”, três canções que são o pão & o vinho de Tião Carreiro e Pardinho, essa dupla que, violas em punho, está na raiz da música caipira e no coração de cada um que se aproxima dos dois, e de sua história, para em seguida lamentar a morte de Tião Carreiro em 1993. Assim, sempre que a hora é conveniente, essas violas, chorando, vêm se debruçar na janela aqui de casa.





Dama da viola

Além de Tião Carreiro, Helena Meirelles também tem seu nome atrelado à viola: ambos, no céu, devem estar se divertindo agora. "Em 1993", me lembra Wikipédia, Helena “foi eleita pela revista americana Guitar Player — com voto de Eric Clapton —, como uma das 100 melhores instrumentistas do mundo, por sua atuação nas violas de seis, oito, dez e doze cordas”. Em algum momento dos anos 90, Helena Meirelles, já velhinha, foi a Araraquara. Lá estava eu. Ouço-a contar que, fim da noite, quando a bebida acabava, ela tomava desodorante em shows que fazia na zona. Mas ela não tirava a roupa. Claro. O striptease vinha da viola, que a acompanhava desde adolescente. Ouço, também, uma mulher tocando viola como nunca ouvi ou vi. É uma mensagem clara aos ouvidos: a arte está em todo lugar, até mesmo na zona, num show de viola caipira, nas mãos de artistas que comem o pão que o diabo amassou, enquanto a fama não vem. Até hoje não sei por que raios comprei o CD de Helena Meirelles e não pedi a ela um autógrafo. Raios. Múltiplos. Mas paciência. Naquela noite, na plateia, estava Régis, guitarrista e vocalista do Motorcycle Mama, banda indie dos anos 90 de guitarras herdeiras de Jimi Hendrix. Régis não estava ali por acaso. Foi ver Helena. Como todos nós.





Viola minha viola

A viola chora, portanto. Durante muitos anos, muita gente torcia os ouvidos para ela, mas era tudo uma questão de vaidade — e de tempo; hoje, aos pés da internet, a viola está tão viva como na época em que vivia nos braços de Tião e de Helena.

Texto publicado originalmente no site Tertúlia em 08/05/2011.



Renato Alessandro dos Santos, 47, é autor de Todos os livros do mundo estão esperando quem os leia e de O espaço que sobra, seu primeiro livro de poesia (ambos publicados pela Engenho e arte).

Renato Alessandro dos Santos
Batatais, 7/4/2019

 

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