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Terça-feira, 21/5/2019
De pé no chão (1978): sambando com Beth Carvalho
Renato Alessandro dos Santos



Um disco que cai bem em qualquer churrasco onde o samba seja bem-vindo é este. Um ano depois de um grande álbum (Nos botequins da vida), Beth Carvalho retornava com este elepê, De pé no chão, de 1978, cercada mais uma vez de grandes compositores e músicos, além de si mesma, cantora de voz segura, amaciada por performances mil em que comandou o terreiro. Assim, contando com uma constelação de compositores e de músicos, que vai de Cartola e de Paulo da Portela a Martinho da Vila, passando por Candeia, Monarco, Nelson Sargento, Beto Sem Braço e gente nova àquela ocasião, como Jorge Aragão e Nei Lopes, além dos músicos, Dino, Copinha, Wilson das Neves, Luna, Genaro e outros, muitos outros, a sambista e os bambas, juntos, fizeram um disco pra cima na melodia, embora perpassado daquela peleja, aquela dor repleta de tristeza ou de nostalgia que, de certa maneira, acha sempre pouso no samba. Mas a alegria não fica para trás; pelo contrário, é ela ali que vai passando, o corpo, uma euforia, a despeito da elegia da alma.

Lado A

O lado A é um arrebatamento. “Vou festejar”, hit de Jorge Aragão, Dida e Neoci, chega em grande estilo, chorando na letra, mas sorrindo no ritmo e na harmonia. É um daqueles grandes momentos do samba em que não há como não reconhecer o valor que a música brasileira tem, apesar de tanta gente ainda não saber disso. “Visual”, de Neném e Pintado, continua o festim, mas cerrando o punho para criticar a apoteose visual que preteriu o sambista, o compositor, aquele que dá vida ao show. Imagine se fosse hoje, com o espetáculo global em que o carnaval se transformou. “Ô Isaura”, de Rubens da Mangueira, é outro ponto luminoso do disco, samba de terreiro em que cabe também uma sanfoninha tímida, ladeando os tambores. África sempre bem-vinda.

“Marcando bobeira”, de João Quadrado, Beto Sem Braço e Dão, tem um surdo que vai batendo o coração, marcando o ritmo com tamborins uníssonos, ao lado daquele cavaquinho sempre matreiro. É deixar a churrasqueira aquecida porque a cerveja continua de estalar a língua. “Meu caminho”, de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito, traz aquela pontinha de tristeza tão presente na obra daquele, dos maiores compositores de nossa música, e vai, em paradoxo, feliz e triste, a nostalgia acompanhando tudo.

“Goiabada-cascão”, de Wilson Moreira e Nei Lopes, a última canção do lado A, faz do partido-alto jeito para homenagear grandes mestres, lembrando de Sérgio Cabral, pai, é bom que se diga; assim, Beth, cantando, vai homenageando os mestres, enquanto o samba vai passando: Antenor Gargalhada, Geraldo Pereira, Silas de Oliveira, Zinco, Oswaldo Lima, Nelson Cavaquinho, Dona Ivone Lara, Mestre Fuleiro, Xangô da Mangueira, Aniceto, Monarco, Alvarenga, Martinho da Vila, Cartola, Noel Rosa...

Lado B

“Você, eu e a orgia”, de Candeia e Martinho da Vila, inicia o lado B, com a maré levando a gente para lá e para cá, enquanto na letra o triângulo amoroso do título segue elogiado e defendido pela cantora e pelos dois autores da canção, que só podem concordar com a permanência dessa santíssima trindade notívaga. “Lenço”, de Monarco e Francisco Santana, é um dos maiores sucessos da carreira de Beth Carvalho. “Pega esse lenço e não chora\ Enxuga o pranto\ Diga adeus e vá embora”: quem não se lembra desses versos? Cantados pelo coro, que tem em seu auxílio uma bateria de tamborins, são um festim. “Passarinho”, de Chatim, fala de voar por aí, sem direção, para um dia construir um ninho, mas sem prisão, por enquanto. Primeiro, a orgia, claro; depois, bem mais tarde, a dentadura dentro do copo, ao lado da cama.

“Linda borboleta”, de Monarco e Paulo da Portela, também vai pelos ares, com aquele céu azul, de sol dourado tingindo as flores e a vida. Uma cantiga de amor trovadoresca. “Que sejam bem-vindos”, de Cartola, muda um pouco a direção do leme; agora, aquele universo de acordes mágicos de violão povoa a cena, amparada pela ambientação de fim-de-noite de uma boate decadente. Só assim para mitigar a dor alheia, daqueles que vivem na berlinda, à luz desses desarranjos da vida.

Termina com “Agoniza mas não morre”, de Nelson Sargento, com o pessoal da cozinha, do Bloco Cacique de Ramos, a se entender muito bem com as cordas dos violões e do cavaquinho, enquanto o samba vai exaltado e cantado, como na melhor poesia, a despeito dos novos rumos que, a partir da década de 1930, chegaram para eternizá-lo: “Samba\ Agoniza mas não morre\ Alguém sempre te socorre\ Antes do suspiro derradeiro\\ Samba\ Negro, forte, destemido\ Foi duramente perseguido\ Na esquina, no botequim, no terreiro\\ Samba\ Inocente, pé-no-chão\ A fidalguia do salão\ Te abraçou, te envolveu\ Mudaram toda a sua estrutura\ Te impuseram outra cultura\ E você nem percebeu...”.

Do maxixe, ao choro; do samba ao pagode é tudo samba, certo? Muita gente não gosta, mas é assim que as coisas são. No fundo, fica sempre a possibilidade do salto, do passo adiante, e termina De pé no chão, este belo LP de Beth Carvalho, um dos melhores de sua discografia.

LADO A

Vou festejar (Jorge Aragão, Dida e Neoci)
Visual (Neném e Pintado)
Ô Isaura (Rubens da Mangueira)
Marcando bobeira (João Quadrado, Beto Sem Braço e Dão)
Meu caminho (Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito)
Goiabada-cascão (Wilson Moreira e Nei Lopes)

LADO B

Você, eu e a orgia (Candeia e Martinho da Vila)
Lenço (Monarco e Francisco Santana)
Passarinho (Chatim)
Linda borboleta (Monarco e Paulo da Portela)
Que sejam bem-vindos (Cartola)
Agoniza mas não morre (Nelson Sargento)



Renato Alessandro dos Santos, 47, é autor de Todos os livros do mundo estão esperando quem os leia e de O espaço que sobra, seu primeiro livro de poesia (ambos publicados pela Engenho e arte).

Renato Alessandro dos Santos
Batatais, 21/5/2019

 

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