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Sexta-feira, 24/5/2019
A cidade e o que se espera dela
Luís Fernando Amâncio

Chegar em uma capital após passar a vida toda em uma cidade de interior tem inúmeros desafios. Primeiro, você tenta dar aquela camuflada no sotaque, para não passar a impressão aos novos colegas de que é um caipira. Presta bastante atenção nas informações, decorando os nomes das ruas, dos bairros e nas direções. E se esforça para entender, afinal, qual é a lógica daquele formigueiro em que foi se meter.

Há quinze anos atrás, sem smartphone, acesso a GPS ou internet banda larga, cada viagem de ônibus urbano era uma aventura para mim. Meus sentidos ficavam em alerta, de olho na numeração das ruas, no sentido das vias, e isso tudo em pé, espremido num busão cheio, na esperança de que alguém descesse e o ambiente se tornasse menos inóspito.

Na medida do possível, eu tentava compreender Belo Horizonte. E um detalhe da capital mineira que me causava estranhamento eram aqueles prédios antigos do baixo centro, com portas de um vermelho chamativo, onde homens entravam e saíam apressados em plena luz do dia. Por mais interiorano que eu fosse, não era um grande enigma decifrar a expressão daqueles cidadãos. Eles haviam aprontado algo, ou estavam na fissura de aprontar. Fácil. Eu estava diante dos famosos “sobe e desce”, instituições tradicionais da prostituição na capital mineira.



Vindo de um lugar onde motel era algo que se escondia nas saídas da cidade, fiquei chocado com a naturalidade como o meretrício acontecia no Distrito da Luz Vermelha belorizontino. Entre lojas de importados chineses, itens para salão de beleza e pontos de ônibus, mulheres comercializavam o acesso a seus corpos como se vendessem feijão tropeiro. Simples assim, como qualquer outra negociação deste mundão capitalista.

Mas eu não estava diante de uma mera curiosidade de BH. Era a história local que se mostrava naquele trecho urbano empoeirado. Uma cidade moderna, construída no ocaso do século XIX para ser a capital de Minas Gerais, concebida pelos ideais positivistas, com a utopia de ser toda racional. A inspiração foi em metrópoles como Washington e Paris, com ruas e avenidas geometricamente projetadas, da forma mais organizada possível. E tudo com uma função estimada. A Rua Guaicurus, por exemplo, seria uma área industrial, ligando a Estação Central ao bairro Lagoinha.

Só não projetaram as enchentes do Rio Arrudas, que espantariam as indústrias dali. E não puderam conter a expansão da boemia pela região. Nas décadas posteriores à sua construção, a rua Guaicurus - e adjacências - foi tomada por estabelecimentos "alegres", com cabarés e prostíbulos para atender a públicos diversos, de distintos cavalheiros da sociedade aos trabalhadores braçais que injetavam energia na economia da capital. Hoje, não há mais glamour ali, mas permanece um complexo que, segundo dados, envolve mais de vinte hotéis, empregando algo em torno de 2.000 garotas de programa.

Esta diferença entre o que se projetou e o que efetivamente se tornou Belo Horizonte, como um todo, e a Rua Guaicurus, especificamente, integram uma história de conflito. É o que podemos observar no livro No Intuito de Produzir Influência Educativa (2019, Grupo Editorial Letramento), de Lucas Carvalho Soares de Aguiar Pereira. A obra é o resultado do mestrado do autor, defendido em 2012 na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. Em sua pesquisa, Lucas Pereira abordou documentos das décadas de 1920 e 1930 que registram como a polícia lidou com a questão da prostituição na capital mineira. Ainda que a prática e os estabelecimentos não fossem proibidos, a autoridade pública tentou coibir excessos e desvios morais. Para o autor, com a ação, que compreendeu a criação de uma Delegacia de Costumes, pode-se considerar que houve um projeto pedagógico moralizante de controle social. O objetivo era claro: enquadrar o meretrício dentro de padrões aceitáveis à sociedade que se pretendia construir.

O autor empreendeu uma ampla pesquisa em arquivos e o livro é rico em trechos de documentos que demonstram a ação dessa polícia de costumes. Mesmo o leitor sem o costume de ler trabalhos acadêmicos de história poderá se interessar por relatos que mostram como as relações na região são marcadas por tensões. A obra está à venda no site do Grupo Editorial Letramento e pode ser encomendada aqui.

É uma leitura que indico não só para se conhecer a história de Belo Horizonte e de sua tradicional zona de prostituição. Em tempos em que discursos moralizantes ganham força, numa onda conservadora de dar inveja às autoridades da década de 1920, é importante saber que a imposição de padrões implica sempre em descriminação e marginalização. Não é o filme Frozen que está criando a homossexualidade, tampouco o vídeo postado pelo presidente não inaugurou o golden shower. A realidade é sempre mais complexa do que um projeto urbanístico e não será qualquer cartilha de bons comportamentos que definirá como os cidadãos lidarão com seus corpos.

Luís Fernando Amâncio
Belo Horizonte, 24/5/2019

 

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