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Segunda-feira, 7/12/2020
Doutor Eugênio (1949-2020)
Julio Daio Borges

“A morte é o único ato perfeito”, já dizia Gustav Mahler. “Porque não precisa ser refeito; não precisa ser remendado...”

Quem me falava isso era o Doutor Eugênio, no meio do enterro da minha avó, em meados da década passada. Mais adiante, começou a discorrer sobre estruturalismo - “porque somos todos estruturas”, completou.

“Era uma cabeça”, foi minha conclusão para o Fê - quando ele me contou da morte do Doutor Eugênio, que, parece, foi em Julho deste ano. Não foi de Covid-19 - mas, na internet, não consegui encontrar nenhum registro oficial.

No final de 2004, quando minha avó estava doente, literalmente desenganada pelos médicos, Mamãe ficou desalentada. Lembro que estávamos parando o carro na garagem do shopping Eldorado, quando me ocorreu ligar para o Doutor Eugênio.

Não havia muito o que fazer, minha avó sofria de uma diverticulite em estágio avançado, já havia tido uma trombose - e tudo o que ingeria, não descia mais... ela botava pra fora. O médico da UTI foi taxativo: “Agora, o que resta é rezar”. Mamãe não se conformou: “Ah, não! Como é que você me fala uma coisa dessas?”.

Mamãe tirou a Guelita do hospital e trouxe para casa (“Guelita” era como a Abuelita era chamada por nós). Chamei o Doutor Eugênio mais pela Mamãe do que pela Gueli (“Gueli” era como também a chamávamos) - realmente, não havia muito o que fazer.

O Doutor Eugênio percebeu a inevitabilidade da situação, mas, mesmo assim, vinha todas as noites e conversava com a família. Examinava a doente, que, em seus momentos de lucidez, sentia-se cuidada - e, para a Mamãe, passava algumas instruções, que, enquanto se ocupava, ia se acostumando com a ideia...

Doutor Eugênio gostava de conversar e esgotava o repertório de todos nós. Para mim, contava das origens do escritor Fernando Morais, que eu lia na época. “Baby” - era como Doutor Eugênio o chamava.

Fez questão de trazer uma poltrona Bergère de sua casa, para que a minha avó pudesse se acomodar melhor, se desejasse se sentar. E quando Abuelita se foi, Doutor Eugênio não quis aceitar a cadeira de volta. Também, quando Papai abordou a questão de seus honorários, ele resistiu em ser pago.

Continuou frequentando a nossa família durante um tempo. Se não me engano, no meu aniversário do ano seguinte, veio em nossa casa e o meu amigo Rodolfo Neder, que me apresentou ao Millôr, ficou encantado com ele. “Quero entrevistar o Eugênio para o Digestivo!”, proclamou.

Doutor Eugênio adorava política e contava que, muito criança, já lia três ou quatro jornais por dia. Tinha uma teoria “bipartidária” da História do Brasil, onde um partido - não importava qual nome tivesse - era sempre o “Partido da Igreja”. Na juventude, havia se filiado ao “Partidão”, como ele chamava o Partido Comunista. E isso o aproximou de Rudy, meu amigo Rodolfo.

Havia sido Secretário da Saúde em São Paulo e falava desse tempo de boca cheia. Encontrei uma página sua no Facebook, quando se candidatou a vereador em 2018 (não fiquei sabendo). Infelizmente, escrevendo, o Doutor Eugênio soava prolixo. Seu negócio era mesmo a oratória. Também me contava de quando Almino Afonso havia chegado do Amazonas e ganhara fama de bom orador.

Um dia, entre os corredores da escola da Catarina, encontrei a Bianca, filha do Doutor Eugênio. Ela me reconheceu e veio me cumprimentar. Na época do passamento da Abuelita, a Bianca era uma adolescente de uns treze anos, se tanto.

Mas, por uma dessas coincidências da vida, ela havia se tornado professora de Alemão - e tinha dado aulas para a Catarina, de quem se recordava (“Claro!”). Mandei lembranças ao Doutor Eugênio e à mãe dela, Sandra.

Doutor Eugênio tinha uma visão meio pessimista do futuro da humanidade, achava que os Estados Unidos só queriam saber dos países anglófonos e que as grandes potências haviam desistido de países em desenvolvimento, como o Brasil. Num exagero retórico, falava, inclusive, em “projeto genocídio”...

Por outro lado, se eu ligasse para ele dizendo que havia uma pessoa convalescente na família, ele viria tão logo pudesse. Era o médico da família por definição - aquele que não existe mais, como frequentemente se diz. Aquele que, na verdade, em sua época, já *não existia* mais...

Julio Daio Borges
São Paulo, 7/12/2020

 

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