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Terça-feira, 16/7/2019
Meu Telefunken
Renato Alessandro dos Santos

Surpreende hoje ouvir música num toca-disco, numa época em que Spotify, Youtube, arquivos de MP3 etc., estão no centro das coisas, não? Não. Todos já sabem que o vinil voltou com toda força. Mas surpreende, mesmo assim, trocar o cristalino som do CD ou do MP3 pelos chiados, pulos e traças que os LPs carregam e que, por alguma razão, elevam ainda mais o apreço que muitos audiófilos têm por eles. É que há uma certa nostalgia embutida aí, mas não em primeiro lugar. Em primeiro lugar, vem a vontade de se ouvir música da maneira mais... mais... pura? Verdadeira? Melhor? Só Deus sabe.


E já que o importante é evitar mentir a si mesmo, todo mundo que se sente plenamente satisfeito com a forma que, hoje, vem consumindo música - dos que vão de streaming aos que, do outro lado da rua, dentro de casa, ligam seus equipamentos de som e deixam o “idioma do coração” (O.K. Beethoven) fazer sua mágica -, bem, essas pessoas merecem parabéns. Parabéns, pessoal. Já a gente que não se importa muito com a - fica assim - intensidade criativa dos artistas mais angustiados, bem... Será que vai chover? Sempre há um pouco de frenesi naquela canção de alguém que, de lá do lugar onde as boas melodias habitam, sai a capturar o tempo no que vai ali, dobrando a esquina, quase um convite a uma réstia de corda qualquer que, indie, alternativa, cult, insinua-se, sinuosa, possível de ser alcançada e tal, como num desenho animado. Tergiversar é uma arte (quando funciona); do contrário, vai esta coisa vagabunda.

O.K. Leitor: o que este texto quer mesmo é afirmar que ouvir música com um equipamento de som bom é o que há. Lá dos confins dos anos 1980 e 90, e dos 70 também, vem chegando uma horda de receiveres, tapes, toca-discos, 3x1, fitas K7 e toda sorte de bugiganga que faz a cabeça de hipsters, não-hipsters e outros adeptos dessa onda nunca morta de preservar o passado acumulando toda sorte de porcaria, ou toda sorte de tesouro, que a sorte deixa encontrar.

Fui eu, então, cinco meses atrás buscar um aparelho de som lá em Atibaia, a X quilômetros de distância. Aí, no mesmo dia em que meu filho mudava para São Carlos, para cursar matemática, logo que terminei de tirar a mudança do caminhão, de montar o que precisava ser montado, de ligar o que... etc., enfim, peguei meu carro e fui até Atibaia, onde um Telefunken me esperava. Sim, um Telefunken. Tecnologia alemã e tudo. Telefunken, na prática, quer dizer a mesma coisa que o Barney diz quando diz “awsome” em How I met your mother, ou seja, “Uau!”.

A viagem não foi fácil; enfrentei uma chuva torrencial, radares, discussão com o GPS e com o carrossel de MP3 do tape, mas cheguei: errei o caminho de novo e cheguei mesmo, enfim. O Ademir me recebeu de bermuda e com uma camiseta do Palmeiras. Na sala, meu Telefunken me esperava. Eu era o gazebo que vinha protegê-lo do sol e da chuva; era o paladino que acabava de matar um dragão só para chegar até ali, para salvá-lo das garras palmeirenses de Ademir. Ainda bem que fui sozinho, porque todo ele ocupou o carro, todos os bancos. Voltei para São Carlos, sem sequer ligar meu Telefunken que, do carro, em partes, vinha transportado como uma peça de Lego para dentro do apartamento do Théo, sem qualquer chance a qualquer bandido de levar meu Telefunken embora; poderiam levar o carro, mas o aparelho de som, não.



Dois dias depois, voltamos, eu e Sementinha, para casa, em Batatais, lamentando deixar para trás nosso filho, pela primeira vez, longe de casa, estudando. Mas assim foi, e após lágrimas descarregadas por dois organismos despedaçados de pais aflitos, na estrada, ainda deu tempo de tomar uma multa por excesso de velocidade que, aliás, paguei há poucos dias, com desconto e tudo. Essa multa... Essa multa é importante. É que ela pode dar ao leitor uma ideia da vontade que estava de chegar logo a casa. Chegamos. Montei o aparelho, liguei-o, e ele retribuiu de volta, sorrindo e soando como um cachecol. Está um frio danado, ultimamente, não? Já sabia que não daria para ouvir discos, porque o aparelho estava sem agulha. Teria de comprar outra. Comprei. A encomenda veio. Errada. E a agulha foi parar na mão de alguém, em outra cidade. Raios. Triplos. Depois de caracóis e caracóis emaranhados, finalmente, chegava ela aqui. Já fazia 15 dias que meu Telefunken chegara, e todo esse tempo sem ouvir um único disco sequer... Pus a agulha, liguei o aparelho, abri uma cerveja, um livro, um girassol, e meus ouvidos, imitando jacarés, deixaram que a maré os levassem, saindo do chão, a outro lugar. Entende?

Pula.

Há três meses, notei que um canal estava falhando, fanho, tossindo, rouco até. O que era? Termômetro, conhaque com limão, feitiço de benzedeira, homeopatia, nada resolvia o problema. Liguei a Ademir, o palmeirense de Atibaia, e ele me recomendou limpador de contatos e cotonetes. Comprei os dois. Gastei quase meio litro daquilo esguichando-o em tudo quanto era contato do aparelho e ao redor da casa, como uma cerca imaginária contra espíritos fanfarrões e... Nada: quatro caixas de som ainda estavam meia-boca, doentes do pé. O tempo foi passando e fui me conformando com aquela falta de audição plena que meu Telefunken vinha me fazendo passar. Infelizmente, para meu azar, era o que vinha acontecendo. Joguei no Bicho, apostei em cavalinhos, comprei Biotônico Fontoura, mas nada parecia resolver o problema. De repente, uma ideia veio iluminar o casebre no alto do morro: e se usasse meu outro receiver, meu CCE vintage? Estava prestes a me levantar, quando outra ideia veio iluminar mais forte o ovo cabeludo: “E se você invertesse os fios das caixas?” - falava comigo mesmo, balançando a cabeça, gesticulando. Faltava pouco para a risada medonha de vilão de filme de terror. Balbuciei a mim mesmo: o que era lado A vai para o... Bem, entendeu, né, leitor?

Fiz isso, e foi então que meus ouvidos ouviram velozes vozes veludosas vindas de direções opostas: dois canais de áudio (lado A) confundiam-se com o outro par de caixas (lado B). Como o aparelho é quadrifônico, quatro caixas podem tocar ao mesmo tempo. O teste deu certo. Eu havia ligado uma caixa errado. “Santa esperteza, Homem Morcego!” - disse-me Robin, com vergonha alheia! A constatação foi como o rio despindo-se diante de Moisés e o pessoal todo. Fiz os testes, ligando as caixas de som assim, assado, açucena, assum preto, e... E... E... Deu C.E.R.T.O! Uau! Deu certo!

Mas, dois dias atrás, a realidade cruel de uma quarta-feira: mais uma vez, um dos canais sucumbia e, longe de rugir, miava. Subi até o morro e lá do alto, como Scarlett O’Hara, mirei os confins e, vidrando as sobrancelhas, bradei: nunca mais! O horizonte fez cara de paisagem e nada me disse de volta. Ricocheteei para casa e, antes que o espírito desistisse, pensei em verificar o cabo RCA do toca-discos... E não é que o dinossauro estava ali? Até falo baixo, sem que ele acorde, porque até agora a música chega em ondas macias, como se, de repente, quatro miniaturas de Miles Davis viessem ocupar o espaço acústico dentro das caixas de som, de trompete e tudo. Agora, estou aqui, fazendo você, leitora, leitor, chegar até este ponto do texto só para descobrir que meu Telefunken, finalmente, está passando bem. Meu receiver CCE vintage continua deseletrizado, encolhido na estante, esperando que um dia venha a emitir todas as faíscas musicais que, dali, certamente, virão preencher os sulcos invisíveis que se comprimem nessa alquimia absurda que a acústica oferece a nós todos. O que importa é que meu Telefunken respira novamente, como se estivesse com 20 e poucos anos.



Toca The Moody Blues nesse instante: um lado C de um disco duplo. Pus, em dois canais, uma caixa diante da outra e, no meio delas, feito uma salsicha de cachorro-quente, eu, que com a cabeça nas almofadas deixo os ouvidos à disposição da música. Há pouco, uma faixa toda psicodélica passou de uma caixa a outra, intercalando os dois lados, e oferecendo o que o engenheiro de som que mixou esse álbum quis; isto é, trazer uma experiência única de qualidade sonora absurda. Parabéns, Sr. Engenheiro! Meu Telefunken, agora, parece Callas, ou Fred e Rita dançando sem tocar os pés no chão, volitando quase, ou mesmo a Apollo 11 descendo na Lua, se é que, para aqueles que ainda desconfiam, ela desceu mesmo por lá.





Renato Alessandro dos Santos, 47, é autor de Todos os livros do mundo estão esperando quem os leia e de O espaço que sobra, seu primeiro livro de poesia (ambos publicados pela Engenho e arte).

Renato Alessandro dos Santos
Batatais, 16/7/2019

 

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