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Sexta-feira, 13/9/2019
Outros cantos, de Maria Valéria Rezende
Ana Elisa Ribeiro

Todo livro tem uma história dele mesmo, uma outra dele com o/a leitor/a, outra história de autoria e assim vamos, como nos círculos concêntricos da água parada, quando lançamos uma pedra - ou uma flor. Foi assim com Outros cantos, romance de Maria Valéria Rezende, nascida em Santos e adotante/adotiva da bela João Pessoa, na Paraíba, depois de rodar mundo vivendo e fazendo viver.

Outros cantos foi lançado pela editora Alfaguara (traço da Objetiva, do Rio de Janeiro) em 2016. No ano seguinte, foi logo arrematando vários prêmios, como o terceiro lugar do Jabuti, o internacional Casa de Las Americas e o São Paulo (melhor romance). Nem por isso, consegui alcançá-lo quando o comprei, não me lembro em que livraria, talvez numa tenda da Flip 2017, quando também encontrei a autora pelas ruas de Paraty. Minha história de leitora de Maria Valéria já estava iniciada, num seu livro infantil chamado No risco do caracol, de 2008, pela editora Autêntica, de Belo Horizonte.

Mas com Outros cantos foi diferente. A leitura, enfiada na marra entre as obrigações de um dia a dia pouco literário, me deu chance de embarcar com aquela narradora num ônibus precário, algum sertão adentro, embolar-me nos pensamentos dela, misturando-a aos meus, sem desistir de umas esperanças que o Brasil se esforça por matar, em especial nos dias que correm.

O título de Outros cantos, visto de longe, na lombada exposta em minha estante, me deixava sempre dúvida sobre que cantos seriam esses: de sereias, de contraltos robustas, de paredes, do mundo? E são mesmo todos eles, em especial esses rincões que nem nome direito precisam ter. No romance, Olho d’Água é um lugarejo que bem poderia ser todos eles, tão parecidos na precariedade, na pobreza, na falta de educação, no excesso de mistério.

São três grandes partes de uma obra em camadas de memória (lembranças). Numa primeira parte, embarcamos no ônibus com Maria (Valéria?) rumo a um lugar qualquer, distante, difícil; mas embarcando com ela, embarcamos também em suas lembranças; e dentro destas, em um baú de objetos que trazem ainda outras lembranças, de outros cantos, que fazem com que a protagonista viaje por dentro e por fora, além desta terceira margem de lembranças que a fazem sair de uns cantos para rememorar outros. Um espelho dentro de outros espelhos, com os desfoques e as distorções de todos eles.

Enquanto o ônibus anda, Maria vai a algum canto, mas lembrando-se de outro, passado, onde foi feliz e infeliz, a um só tempo, como sempre somos. Por meio do texto, sentimos a falta de ar daquele lugar, as crianças privadas de tudo, mas livres, de tanto que são ignorantes. Ou oprimidas de tanta falta de tudo. E os políticos, calhordas como os sabemos. E as amizades feitas na base do cuidado e da ausência. Maria vai revelando, por meio de suas lembranças e de seus pensamentos, o que a leva àquele sítio desprotegido de tudo, onde pessoas vivem a despeito da escassez e morrem achando que sofreram pouco. Um sítio de tecedores de redes — que fazem lembrar Penélopes à espera sabe-se lá de quê, certamente não de um Ulisses. Penélopes esperançosas sem saberem. Um sítio onde o tempo não se mede em relógios de ponteiros; onde a água é luxo; onde os sorrisos são sustos.

Maria vai revelando a macro-situação — tempos de ditadura militar — e se revelando aos poucos, conforme as palavras vêm à narrativa, que me pareceu antes lenta, e depois precisa, na cadência de quem sofre angústias, medos, sem perder a ternura jamais. Maria é, então, uma mulher vivida, culta, poliglota, viajada e que está ali para ser professora do Mobral. Alerta de spoiler, sinto muito, mas é disso que trata Outros cantos. É de educação, é de esperança, é de escassez, é da missão de quem se dedica a educar, no mais inóspito do mundo, a despeito da fúria dos perseguidores (qual sala de aula não é inóspita? Mas algumas são, certamente, muito mais e bem mais precárias). E a respeito de quem não consegue cumprir sua missão, se sufoca, se arranha, se lanha, quase desiste, mas não desiste. Antes disso, escapa, respira, balança mas não enverga. Qualquer coincidência com a vida de grande parte dos professores... não será mera coincidência. Qualquer identificação com qualquer sertão brasileiro — e ele é gigantesco, muito maior que nossa parte urbana — também não será sem propósito.

Outros cantos é a história de uma mulher que atua na miséria, sobre a miséria, com a miséria, a despeito da miséria. E ainda assim encontra fôlego, amor, ternura, força na investidura. As frases finais de Outros cantos são um hino, uma ode à esperança, teimosa e persistente como dizem que é. (Onde andará a minha?)

A obra é uma narrativa em diversos tempos meio simultâneos (tanto quanto a linguagem permite que seja): presente, passado, mais passado e algum mínimo futuro. Uma mulher à espera, tentando conter a angústia, aprendendo a cultura de um povo e mais outro e mais outro, comparando-os em sua humanidade inescapável, enquanto cumpre uma missão quase impossível: educar para a crítica, a libertação, a emancipação e contra a opressão. Várias opressões, diga-se. Aqui e ali, pelos cantos dos parágrafos, a diversidade de opressões de que somos capazes e vítimas, hora ou outra.

O romance de Maria Valéria Rezende conta 146 páginas de uma escrita incisiva, cuidadosa, bastante adjetivada, talvez por isso se demore um tanto e nos dê às leitoras e aos leitores tanta chance de embarcar naquele ônibus e nos embrenhar naquelas sendas de plantas agressivas, e de fé e de calor, e nas sendas dos pensamentos da personagem (ou será o sertão o protagonista?). Uma protagonista e um olhar sobre o periférico, embora ela mesma não seja dali, mas se doe para o mundo no que ele tem de mais, ao mesmo tempo, frágil e espinhoso. Outros cantos serve para nos tirar do centro, inclusive da literatura, tradicionalmente masculina e metropolitana; e para abanar nossa brasa de esperança, a de alguns, é claro.


LeP


Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 13/9/2019

 

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