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Quinta-feira, 23/4/2020
O bosque inveterado dos oitis
Elisa Andrade Buzzo

Em certas ruas já vivi. Ruas com casebres, prédios baixos, oficinas de máquinas de costura e tecido à porta. Ruas de prostituição, danceterias, edifícios abandonados com cortinas rendadas de teias de aranha. Ruas de areia, de paralelepípedo, de pedra portuguesa, de asfalto ou concreto. Algumas humildes, outras sofisticadas, com movimento de bares à porta, padarias fumegantes na manhã primeira, velhos bronzes e alta-costura. Noutras emaranhavam-se fios de eletricidade, helicópteros, casarões com vista para vales de rios tamponados. Certas delas, decoradas com o badalar de sinos, o trepidar de trens, a buzina de navios cautelosos. Hoje, vivo em uma rua muito distante do mundo, a última transversal de um bairro, onde não se antevê ninguém chegando, mas se divisam gaivotas partindo.

Ainda assim, as coisas andam mudando; da rua, lentamente se precipitam novos elementos, engatinhando, trepando por sua ladeira ressentida. Há construções, há demolições, há abandono na antevisão da janela. Por isso mesmo, nessa mescla de espera, transição e ação, é que se engendra uma educação compulsória da paciência e de certa resignação desexpectante. Na sucessão de brilhos que se acendem a cada entardecer, um signo de novidade estaca dentro de cada lâmpada longínqua na cintura do porto. Em certa noite, reacende um ponto vermelho inédito, piscante, na outra margem do rio. Focos ilusórios que se desfazem no branco lavado da aurora, antes mesmo de olharmos mais uma vez para atestar sua veracidade.

Desta rua, avistam-se muitas coisas ao longe, sim. Assim como se veem elementos de episódios passados, difundidos no presente. Há depósitos sem nada dentro, como um peito tóxico esvaziado, carcaça de torres sem flâmula, que já não queimam nem poluem. E caminhar por seus arredores traz a continuação de outras alamedas de calçadas riscadas, desertas e largas, pontuadas por palmeiras franzinas e desencontradas, guindastes silenciosos e caminhões de cimento na entrada das obras. Os ecos de marteladas, que fixam pontos diversos de futura solidez, dão um ar de melancolia e susto, badalos de carrilhão ressonando no tempo. É como se houvesse um prenúncio da inutilidade da força mesmo na tenra idade das construções, diante da inconstância mesquinha a que se submeterão adiante. Nasce-se, mas fraqueja-se, não no instante seguinte, mas no momento mesmo da força maior.

Como se tivesse sobrado pelo silêncio autoimposto nessa conjunção de pedras partidas e encavaladas, sobressai um pequeno bosque de oitis. Talvez tenha sobrevivido mesmo pelo abandono, fincado no descampado por tantas vezes reocupado. Oito oitis, de caules portentosos, galhos rijos, folhas pequenas nas copiosas copas espiraladas. Encampados, fincados, enfileirados, como um túnel fresco. E no interlúdio da passagem por seu caminho de sombra e musgo, pesar fundo, ser parte presente no profundo daquele conjunto orgânico, desenganchado de ruínas e escombros, distanciado de previsões ou profecias. Que importam as ruas alijadas, as ruas projetadas, as ruas onde jaz o esquecimento? entra-se pelo momento do bosque dos oitis, apenas esta-se no ato de passar por ele, nele estando, indo dentro de si, terráqueo.

Elisa Andrade Buzzo
Lisboa, 23/4/2020

 

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