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Quinta-feira, 20/8/2020
Cinemateca, Cinemateca Brasileira nossa
Elisa Andrade Buzzo

Ah, Cinemateca, Cinemateca brasileira um dia minha, tu és um dos motivos da minha vida agora ser indefinidamente macambúzia e contrafeita. A bem dizer, tu, não, mas aqueles lá na capital federal, em seu projeto de poder pessoal, que te perseguem. Seria exagero dizer que um dia minha existência já girou em tua volta, como um planetinha azul em torno de uma lua em um campo escuro de projeções estelares? Um cronograma pautado nos horários de suas sessões, no tempo de sair de casa, da faculdade, pegar dois ônibus (ou dois ônibus e um metrô), e aportar no aconchegante largo Senador Raul Cardoso, uma clareira charmosa incrustada em um ponto baixo da Vila Mariana. Então, talvez eu não seja tão diferente assim daqueles lá, pois temos uma fixação pela Cinemateca; muito embora haja uma pequena mas bastante e significativa diferença em seus motivos: eu, por amar e valorizar o Brasil de verdade, aqueles, que criam uma versão própria de Brasil, e por odiar a cultura e o patrimônio.

E não é só o seu acervo, o maior de imagem em movimento da América Latina, que seduz, mas o local também, desde, apenas, 1992, a largueza e conforto de suas duas salas de exibição, seu jardim com esculturas. Fiz um acompanhamento em um curto período das transformações no largo, de um curioso e amplo espaço asfaltado, que eu preferia, à uma geometrização forçada de faróis e vagas de estacionamento. A retirada de um ponto de ônibus bem em frente à porta da Cinemateca, aliás, foi o que me fez ir desistindo de frequentar o local, muito ermo, ainda que por isso mesmo cativante, no final da última sessão noturna.

E eu já quis morar nos predinhos de alto padrão em frente à Cinemateca, só para não perder essas sessões... E eu já imaginei os bois entrando no antigo matadouro municipal da cidade, edifícios históricos construídos em 1887, observando restos de trilhos envidraçados no solo já como uma arqueologia recente das relações entre homem, artefatos e ambiente natural. E as construções e reformas continuaram, até mesmo na destruição do mais belo e original banheiro que já vi, o antigo feminino da Cinemateca, com seus amplos espelhos, vasos sanitários e portas pretas, as torneiras como cascatas em cubas verticais de pedra clara, onde a água caía estranha e perpendicular.

A memória falha na lembrança dos filmes assistidos com entusiasmo nos tantos ciclos, sobretudo aqueles de cinema nacional, da nossa história ou aqueles mais recentes, tão judiados de exibições. Uma longínqua sessão noturna lotada com acompanhamento musical ao vivo do clássico mudo Limite, de Mário Peixoto, O grande momento, com o Gianfrancesco Guarnieri tão novinho, Como era gostoso o meu francês, Matou a família e foi ao cinema, Compasso de espera, filme importante e bem esquecido que trata do racismo, Macunaíma com o Grande Otelo, o impactante Alma corsária, o mais recente e diferente Reflexões de um liquidificador, com uma boa interpretação da Ana Lúcia Torre... E os clássicos da Companhia Vera Cruz, Tico-tico no fubá, com um Anselmo Duarte e uma Tônia Carreiro tão bonitos... Todas as pornochanchadas que gostaria de ter visto e perdi, críticas políticas agudas disfarçadas em camadas de humor e sexo, como a Super Fêmea, com a Vera Fischer.

Havia também cursos de cinema com professores da ECA-USP, como o que fiz, sobre Griffith, com uma sessão inicial de O nascimento de uma nação. E ciclos estupendos de cinema estrangeiro, como o da obra de Alain Resnais, com os divertidos Smoking e No smoking, com Pierre Arditi e Sabine Azéma, e os importantes curtas, como o impactante Noite e neblina. Houve também filmes que ficaram na memória por não terem sido vistos, como o mudo alemão O Gabinete do Dr. Caligari, que eu veria neste ano em outra cinemateca. Antes das sessões, o cafezinho, tão simples, pequenino, disfarçado, com um ou outro salgado, quase nada, mas já suficiente em sua escassez, em suas mesas rígidas e cadeiras de madeira velha de cinema antigo.

Cinemateca, Cinemateca Brasileira nossa, fecharás eternamente? volatizarás? encontrar-nos-emos nas imagens raras de uma outra vida inteligente, quiçá em uma outra galáxia, na qual tudo isto que vemos será um ponto idiota e fulminante de um passado obscuro? Com que esgar atônito de boi em dor e espanto assistiremos a um abatedouro macabro ressurgir, sobrenaturalmente, pelos atos imperdoáveis contra a cultura e memória brasileira inflingidos por isto a que se chama governo federal e ministério do turismo?

Elisa Andrade Buzzo
Lisboa, 20/8/2020

 

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