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Sexta-feira, 4/9/2020
Nem morta!
Ana Elisa Ribeiro

E a morte virou tema, na hora do almoço. De repente, era só a hora do lanche, mas o fato é que a morte virou assunto. Talvez porque tenhamos de lidar com ela massacrantemente, nos últimos meses; porque ela tome grande parte do noticiário, dia e noite, embora alguns achem que não é nada demais; talvez porque ela tenha parecido mais próxima, ameaçadora, nas mãos do entregador, na máscara da senhora, na moça do supermercado, no vizinho médico que chega do plantão no elevador. Talvez seja o climão que todo mundo atravessa há meses. As pessoas agora morrem e é preciso pôr um aviso: não foi coronavírus. Ou não.

Lanchávamos ou almoçávamos, quando minha mãe resolveu fazer uns pedidos e dar umas informações importantes, para o caso de ela morrer. Não é ainda uma idosa à beira da cova, não padece de doença grave, não recebeu diagnósticos desenganadores. Nada. É que fez uns exames, toma uns remédios e vive neste planeta pestilento. Daí, com base em histórias desastrosas de famílias conhecidas, resolveu dar os exemplos que não deveríamos seguir e informou que anda orçando túmulos. OK, não deveria ser assim tão terrível. E então, depois de alguns segundos do espanto negacionista das filhas, ela passou a dizer, com objetividade, onde queria ser enterrada e como, inclusive que tinha o dinheiro guardado para o custeio do ritual, que não gastássemos os nossos, etc.

Está certíssima. Se não morreu subitamente, ao longo de uma vida arriscada para qualquer um, e já que morrerá idosa, de alguma causa serena (é o que esperamos), que deixe as coisas organizadas para quem fica. É esquisito, mas é também uma forma de cuidado e amor. Uma pena que sejamos tão bobos/as para tratar disso.

Um tio deixou tudo pronto, certo, líquido e fácil para nossos primos. Esteve adoecidíssimo, então não titubeou. Tinha posses, minha tia já era falecida, então ele resolveu tudo, de forma que a moçada ficasse tranquila para sempre. Perder os pais jamais será tranquilo, mas que ao menos não tivessem de gastar os tubos com a indústria cartorial da morte. E outros exemplos foram saltitando de nossas bocas, inclusive esses que dão um trabalho descomunal para quem fica nesta Terra, inclusive dívidas, além de dúvidas que apenas advogados careiros conseguem sanar.

Eu cá, não. Enquanto minha mãe orça túmulos num cemitério desses que parecem parque, sem a lagoa com pedalinhos, eu quero ser cremada. Aproveitei a conversa franca e tétrica para avisar. Mais que isso: aproveitei para exigir. Sem dó: cremem. Minha mãe quer ficar perto de uns parentes, na área sul ou sudeste do cemitério Tal, ali entre uma árvore e um arbusto. Sabe até a localização exata. Eu, não. É simples: tenho horror a ter endereço depois de morrer. Quero mesmo é sumir no ar. Ah, se fosse possível.

Enquanto minha mãe pensa no tamanho da cova, nos andares e nas tampas de concreto, eu penso na urna. Toda vez que a gente começa a se preocupar com algo, descobre um universo inteiro de novidades. Já pesquisou urna de gente cremada? Eu, sim. Há para todos os preços e gostos. E algumas coisas me surpreenderam. Gostei de uns modelos modernos, arredondados, com jeito de peça de arte. Nem são tão caros. O preço varia com o material e o design. Tem urna de madeira, semelhante a uma miniatura de caixão, e tem urna que parece vaso chique. Dá para enfeitar mesa de canto e tudo (evitar a mesa de jantar). Há pingente!! Isso me deixou boquiaberta. A pessoa pode ser cremada, virar um pó esbranquiçado e ser colocada dentro de um pingente lindíssimo, para quem quer carregar o ente querido no pescoço. Não, melhor não.

Minha mãe quer ficar ali deitada, na mesma posição - é o que se espera -, para todo o sempre. Pretende que paguemos uma espécie de condomínio para o resto da vida, já que teremos de manter seu endereço pós-morte. De vez em quando, alguém irá visitá-la, porá flores no túmulo, varrerá a poeira da lápide com seu nome gravado. Eu, não. De preferência, quero sumir na paisagem. Mas qual?

Minha irmã logo disse: mas o que faremos com suas cinzas? Respondi prontamente: não guardem. Jamais. Aí fui pesquisar o que dá para fazer, já que, segundo minha mãe, há regras para essa dispensa. Nem tanto, foi o que descobri, neste novo universo temático. As pessoas jogam no mar, opção que só me entristece. Passei a vida fugindo dele. Se me jogarem numa praia, será por pura malvadeza. Outras pessoas levam as cinzas para casa e montam uma espécie de altarzinho. Não, por favor, mórbido demais para o meu gosto. Há quem jogue numa praça, num local da cidade de que a pessoa morta gostava... mas não é toda livraria que vai aceitar uma coisa dessas. Nem todo restaurante, nem toda padaria. Prefiro não causar esse constrangimento aos meus amigos e amigas desses poucos espaços que gosto de frequentar, em vida. Pensamos: então no jardim da sua casa. É melhor ideia, acho. E aí descobri que há um tipo de urna funerária e um serviço que usam as cinzas do/a cremado/a para plantar uma árvore. Curti. Isso, sim, me pareceu mais simpático. Uma árvore tem simbologia tão forte, tão positiva. Por que não?

Minha casa, meu pequeno jardim, minhas pleomeles mais altas que o muro, minha varanda desajeitada. É isso. É de onde nunca quis sair, é para onde sempre quero retornar. Nada de ar, nada de mar, nada de rua. É aí que me finco. Nada de condomínio, nada de endereço, nada de quadra, nada de número, nada de vizinhança muito próxima, logo sob ou sobre a lage fina. Quero mais é desaparecer. Lendo sobre esta possibilidade, soube que a pessoa é cremada ali pelos mil graus, mas depois ainda precisa ser triturada, para então ser entregue à família. Não acho pior do que ser enterrada num buraco escuro e ser devorada por larvas. Soube também que ser cremada é mais ecológico e nem é mais caro. Achei que já tivesse então argumentos e motivos suficientes. Mas aí veio a questão religiosa. O catolicismo, por exemplo, não admite a ideia de que se creme alguém e leve para casa. As cinzas devem ficar em um local sagrado. Bom, se a escolha for da morta e a morta não ligar muito para religiões, acho que dá para contornar. Só é preciso lembrar de combinar as coisas com um/a parente também menos religoso/a.

Minha mãe já sabe como e onde. Fez lembrar a propaganda ótima de um famoso cemitério em Belo Horizonte: "se você não sabe quando, pelo menos saiba onde". Sensacional, não? Apropriado, até engraçado. Deve soar piada de mau gosto para os/as mais sensíveis. Mas é isso mesmo. Minha mãe sabe. Eu, também. Das cinzas para uma árvore no jardim de casa. Nada de praia, local de trabalho (pelo amor!), praça pública, lagoa, nada disso. Buraco escuro então, nem morta!

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 4/9/2020

 

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