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Quinta-feira, 29/10/2020
Alameda de água e lava
Elisa Andrade Buzzo

Anuncia-se uma miragem no deserto da quarentena. Imergidos na bolha da claridade calamitosa, em que o branco incide e se rebate, andarilhos ao léu perseguem seus longínquos e desconhecidos objetivos, como se pela ação do caminhar mesmo sem rumo se houvesse afinal de se encontrar uma possibilidade de jardim caudaloso.

No amplo espectro, o branco cintila, permeado pelas poucas silhuetas negras, desorientadas, que iniciam uma organização trêmula em duas linhas retas e paralelas. Isso porque a roleta do movimento alucinado e incessante, afinal esmoreceu, enfim parou, sem novo impulso. Alguém fincou azinheiras e tílias nas pedras, de caules delicados e folhas claras espetadas, que surgem como uma introdução palpável desse débil e novo sonho.

Vegetação e corpos estreitam-se, como sombras que vão se juntando em um sentido único de uma nova configuração, esbatidos os impulsos, interrompidas as obrigações, alterados os projetos da arquitetura universal. O céu ainda rutila por sobre o arranjo geométrico, que busca a estrutura protetora de um dossel, um firmamento que suavize a ardência da praga.

Um rasgo na terra determina um traço de água raso, este, em um ínterim da secura, canal ladrilhado de faixas coloridas, que se interrompe de tempos em tempos, enquanto a fragilidade das tílias é alternada pela austeridade por carvalhos robustos. Em uma paleta gradativa do amarelo, do vermelho, passa-se pelo laranja, pelo roxo, pelo azul e pelo verde nas fontes, a água explode e escorre. É o mecanismo de riachuelo aliado a vulcões, o passadiço arborizado.

Que não haja engano, há uma tubulação para manter as máquinas respirando, bufando, por debaixo do gradeado, uma engenharia de água que também arde. Afinal, esse troço líquido é uma encenação. Espécies de árvores foram escolhidas, uma junção de elementos nunca antes pensada pela natureza foi alicerçada e plantada pelo homem, e assim a cenografia do caminho foi delimitada.

A alameda de água e lava é uma síntese de dois elementos que a ela correm paralelos: o traço de rio natural e o risco de cidade artifício. Em algumas centenas de metros, atravessam-se oceanos, distintas geografias em linha reta, na sensação de calmos navegantes, descobridores no alento de luz e sombra, enquanto algures a Terra fulgura e queima. Exploradores manhosos passeiam, tomam banho, descansam, varrem, podam as eritrinas.

O amarelo-alaranjado desse paraíso sintético vai deixando sua rigidez na suspensão de um jardim azul-esverdado, com palmeiras entornando o palpitar das fontes, abelhas planando em frêmito. A porção norte é mais luxuriante, mais arborizada e com mais camadas de arbustos acanteirados e palmeiras. Observa-se, ao longe: é este outro tipo de paraíso, artificioso, em que o reflexo das águas trêmulas dos canais rebate nos galhos dos pesados carvalhos?

Há sempre algo prestes a acontecer. Por isso, dá-se um último passo, e se está fora da exuberância de folhas e águas perfiladas. Os vulcões explodem assim que o local se esvazia, sendo registados apenas alguns gritos e vivas. As fontes-vulcão e o canal se afastam, adentrando na espessura da mata onírica.

A tarde é luzidia. Uma silhueta de homem atravessa transversalmente. A vida em potencial não pode se expor a nu diante dos olhos, ela acontece na sombra de uma flecha, nos respingos excedentes de água, na trajetória da queda de uma folha. A cidade desértica prevalece como um facho constante dependurado num corredor petrificado, pintada de ardor e calma desolação.

Sempre há algo prestes a acontecer, na forma de um pássaro morto, uma faísca de lembrança, uma criança em fato de banho nos canais.

Elisa Andrade Buzzo
Lisboa, 29/10/2020

 

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