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Terça-feira, 17/11/2020
A sujeira embaixo do tapete
Renato Alessandro dos Santos



Flui com muita rapidez a leitura de Desonra, de J. M. Coetzee. O que faz pensar que não foi por acaso que esse escritor sul-africano ganhou o Prêmio Nobel de literatura de 2003. O romance conta a história de David Lurie, professor quinquagenário que, desafortunadamente, após se envolver com uma aluna anos-luz mais nova que ele, vê seu emprego na universidade ir para o espaço: denunciado pela garota, seu nome vai parar nas páginas dos jornais, acusado de abuso sexual.

Desonra surpreende o leitor ao mostrar Lurie como um anti-herói desiludido e fadado ao fracasso. Embora seu crime tenha sido uma noite de sexo com uma aluna, para ele, o ato em si não deveria desqualificá-lo como ser humano demasiado humano que é, e por isso surpreende-se ao ver-se envolvido em um escândalo que chega à mídia e passa a ocupar o noticiário da TV. O que faz pensar na anatomia do crime ou, em outras palavras, em como hoje o mundo está tão certinho que, ato falho, muitas vezes, é possível que alguém nem se dê conta de que errou. É o que acontece com Lurie: para ele, tudo não passou de sexo concedido, rápido, altamente erótico, mas para a garota, o pesadelo; afinal, ela não conseguiu esquivar-se da sedução de alguém mais velho, que, sem pestanejar, ainda se aproveita de sua condição de professor.



Lurie é expulso da faculdade, num lance de pura maldade por parte de seus superiores, uma vez que não se dispuseram a ajudá-lo, ou melhor, até quiseram, mas sempre o encostando à parede e oferecendo acordos que não diziam nada a ele. Não, obrigado, diz o professor que, longe da faculdade, sem saber muito bem o que fazer, resolve visitar a filha no interior da África do Sul. É a partir daí que o romance revela um painel surpreendente de um país que vive o pós-apartheid.

Em uma terra onde nem tudo pode ser cultivado, a oposição entre negros e brancos ainda existe. Lucy, única filha de Lurie, é uma mulher de meia-idade, forte, opulenta, homossexual. Ela tem um sítio e vive do que planta. A vida segue adiante para ela e para o pai, a quem acolhe; até que um dia, homens invadem sua casa e a estupram, para desespero de Lurie, que fora colocado desacordado num quarto. A filha, por mais que o pai insista, recusa-se a dar queixa na polícia. Essa atitude não é por mero receio do que poderiam pensar dela e, sim, por ela julgar que, naquele momento, a coisa mais certa a se fazer não seria o mais apropriado para aquela região do país. Para Lucy, o estupro foi uma maneira que encontraram para afastá-la dali, mas, por isso mesmo, ela não sairá de sua terra e não abandonará a vida que leva, para desespero de seu pai.



Como a preocupação de Coetzee é fazer alta literatura, o leitor faz as contas e pode entender que Desonra trata de uma situação semelhante às duas moças, a aluna e a filha de Lurie, e tal perspectiva é um verdadeiro trunfo desse romance incisivo e seco, cirúrgico como a autópsia que faz da sociedade sul-africana. Com o fim da Copa do Mundo de 2010 no continente africano, em 246 páginas, Desonra ilustra tudo o que comentaristas esportivos insistiram em contar, quando, além do futebol, discutiram a segregação racial que, na prática, infelizmente, ainda não acabou na África do Sul.

Texto publicado originalmente no site tertuliaonline.com.br.

Renato Alessandro dos Santos
Batatais, 17/11/2020

 

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