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Quinta-feira, 10/12/2020
Na translucidez à nossa frente
Elisa Andrade Buzzo

Há uma curiosa sorte que acomete a um pensamento pandêmico. Nada começa, nada termina, em última instância. Existe uma continuidade de situações e ações consistindo em um início sem pedidos de licença, e términos de ações esmorecidas. Ou seja, são situações sem situacionamento e ações inativas. No entanto, tais coisas têm um pico e é exatamente este momento de altura que dá a marca da realidade preponderante.

Se há uma cachoeira, e esta impressiona pela força de cascata e pela nuvem de espumas, a nascente e a foz percorrem seu fluxo abrangente de continuidade e contingência. Há estados que começam, duram anos e terminam sem nada ser dito, pois há quem do impulso inicial retire meios para a continuidade, deixando as coisas morrerem por si só, incapazes de dar um fecho. Incapazes, aliás, de dar um começo, portanto, naturalmente, o final também é um ponto em suspenso.

Assim sendo, não há marcos, nem aniversários, nem bodas, antes uma suspensão que, antes de haver uma retomada, chega a ponto de concluir as coisas por si só no desaparecimento por completo. E isto gera uma perplexidade quando se dá conta do ocorrido, como também uma sensação fina de alívio. Foi melhor assim. Uma retrospectiva positiva em relação ao passado duvidoso. O que é bem diferente de “tem de ser”. Uma perspectiva, amarga em relação ao futuro indesejado.

Entráramos em um local que não devíamos, entráramos em qualquer lado, sem medir as consequências, e de tal forma que nada diferente daquilo pudera ser, e tudo se tornara repentinamente tão vitalmente necessário para a existência de abutre faminto de vida, que não haveria meio de dissuadir-se de tais intentos. Andamos, longamente. E certos fios de seda apontam na pele como um dedo a indicar um caminho, ou a pretender que paremos. Quais leves toques são esses, de insetos, de bichinhos em imensa quantidade que seguem sua vida em voo e caminhar concomitante à nossa, e nos alcançam em uma picada acidental, um resvalar sutil? Ou serão armadilhas superpostas na translucidez à nossa frente?

Está-se a todo o momento a atravessar uma teia. Entramos em um lado qualquer, entre duas paredes de plantas, um labirinto de trepadeiras e arbustos fechados. Mas não sabemos para o lado que vamos dar. A grande teia segue-nos. Não, envolve-nos. Grande teia, da qual a insensibilidade mormente impossibilita o seu sentimento. Finos veios invisíveis – olhamos, não há nada palpável, tudo some no ar, esfarela-se na derme, na roupa, mas sente-se um repuxamento. Intrincada teia, e parecemos sempre estar no lugar errado depois de pensar que era o certo. Às vezes ela nos emaranha. Nós, que pensávamos ser segura aranha.

Não se começa, não se termina; aguarda-se o pico e o seu desvanecimento. Encontramos na blusa preta vestígios da teia. Sim, eles desaparecem em mais alguns passos, para depois um novo bloqueio. No entanto, por sua vez, mais uma vez nos desvencilharemos e as linhas, quebradas, desse desenho de geometria animal, tiveram a chance de nos dar qualquer coisa como um aviso, um empecilho.

Elisa Andrade Buzzo
Lisboa, 10/12/2020

 

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