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Quarta-feira, 23/12/2020
Jogando com Cortázar
Cassionei Niches Petry

Ler Julio Cortázar é um ato único, mesmo quando o relemos. Há sempre algo que nos escapou nas leituras anteriores, há sempre novos significados nos seus textos, há sempre um mistério que não foi e nem será desvendado. Ler Julio Cortázar é um jogo entre escritor e leitor, em que ambos ganham. O escritor, por ludibriar o leitor. Este, justamente por ser ludibriado.

Não é à toa que um de seus livros de contos se chama “Final del juego”. Porém seus jogos literários não têm finais. Ou eles estão em aberto, como no próprio conto que intitula e fecha a obra, ou o leitor volta ao seu início, num eterno retorno, como em “Continuidad de los parques”, que abre o livro. É um conto que nunca termina e sempre recomeça. O leitor corre o risco, inclusive, de jamais deixar de lê-lo.

Nesse jogo, jogamos com o acaso. Em “Uma flor amarilla”, por exemplo, o protagonista se depara com um jovem que se parecia com ele próprio na mesma idade e que passa por situações idênticas a que ele passou. Isso, claro, se se pensar o conto numa leitura realista. Cortázar, porém, era um escritor do fantástico, em que os fatos reais beiram o estranho, o insólito. Então, não há nada de acaso, mas sim o personagem encontra o seu duplo, numa espécie de falha da Matrix. O que faríamos se encontrássemos nosso duplo? Não sei o que eu faria, mas imagino o que ele faria e relato isto em um conto que publiquei em um de meus livros, “Cacos e outros pedaços”.

A releitura dos mitos, que no livro anterior, “Bestiário”, se deu com o conto “Circe”, agora é retomada com “Las ménades”, em que um Orfeu moderno é destroçado e devorado pelos seus fãs. O tempo é reajustado em “Sobremesa”, afinal, como se pode ir a uma festa cujo convite só seria feito alguns dias depois? Os sonhos não são apenas sonhos (“El río” e “Relato con un fondo de água”), de uma porta escondida atrás de um armário em um hotel podem sair sons estranhos como um choro de um bebê (“La porta condenada”), vestir uma blusa pode ser extremamente perigoso, ainda mais quando a mão se volta contra o próprio dono (“No se culpa a nadie”), os venenos, quando nas mãos de uma criança com ciúmes, podem não servir apenas para matar formigas (“Los venenos”, conto autobiográfico, segundo Cortázar).

O autor nos ludibria com a ambiguidade recorrente em todos os relatos, nos deixando perplexos, sem respostas. O homem que se transforma numa espécie de salamandra que observava num aquário não seria na verdade a própria salamandra imaginando ser o homem que a observava, no conto “Axolotl”? E o motociclista que na cama do hospital, entre o sono e a vigília, sonhava estar numa mesa sacrificial dos antigos astecas, não seria na verdade a vítima que está prestes a ser morta sonhando que montava um cavalo de rodas numa cidade estranha, cheia de luzes, como se lê em “La noche boca arriba”?

Releio “Final del juego” e, como um dos protagonistas de “Continuidad de los parques”, fico com a sensação de que estou dentro do livro que estou lendo. Sinto que a qualquer momento posso ser apunhalado pelas costas, envenenado, devorado, afogado, abandonado, metamorfoseado, enfeitiçado, nocauteado, assassinado, sacrificado. Ainda bem que é tudo ficção. Ou não?

Cassionei Niches Petry
Santa Cruz do Sul, 23/12/2020

 

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