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Quinta-feira, 7/1/2021
Pobre rua do Vale Formoso
Elisa Andrade Buzzo

Rente ao rio, numa manhã opaca de outono e sol, um grande terreno se traceja em formas de construções ainda desconhecidas, cujas fundações imaginárias sulcam a terra. O azul brilhante e pastel do Tejo envolve, como cabeceira, esse novo leito por tantos anos abandonado, onde cintila solitário em castanhos. Terra é revolvida, a silhueta preta e distante de dois homens acompanha os trabalhos, um caminhão passa resfolegando rastros de poeira em sua carcaça, uma mão de ferro gigante revolve mais terra contaminada.

Eu já quis morar na rua do Vale Formoso. Primeiro, porque é um nome que exala poesia, de não se jogar fora. Depois, porque é o único pedacinho de residências com ar antigo na parte extrema oriental da cidade. Ainda, por suas costas há uma linha férrea que me lembra a presença onipresente e sufocante dos comboios para Gloria Grahame, na versão de Humain Desire de Fritz Lang. Mas a lógica do sonho e da ficção não funciona na vida; portanto, lá não moro, ainda que a vislumbre da minha janela.

Aliás, nem mesmo quero mais morar lá. E, ultimamente, tenho tido pena de quem parece ter vivido a vida toda naquela redondeza como aquele senhor, que passa pela rua sempre com o mesmo saco do IDL, e aquela cachorrinha. Eles andam num trote completamente acostumado com as torções daquela rua, cujo acesso se dá por uma escadaria oculta. Provavelmente, há um pedaço de vale formoso que fora decepado pelo progresso universal.

Agora, no grande terreno que abarca parte da rua, em sua margem mais próxima ao rio, há esse maquinário fumegando, caminhões repletos de terra num ir e vir constante. Em um deles, as palavras: BIZARRO. Só mesmo os dias de quarentena encerram o carrossel de caminhões subindo o viaduto com o peso do passado a forçar o asfalto do nosso presente. E eu penso na cadeira de plástico atirada em um canto de uma casa muito velha na Azinhaga do Batista – quantos mais comboios do futuro por ela ainda poderão passar?

Você, que já teve algum tipo de cinema escondido, cuja placa "Cinemate" se encontra atirada. Você, que ainda há de esperar um político inaugurar alguma importante obra. Há um letreiro qualquer, "Teatro", em caracteres pretos. Você, neste dia 31 de dezembro de 2020, que lançou um conjunto de fogos de artifício coloridos bem em frente de casa. Só você mesmo para ter um gesto de delicadeza otimista no confinamento, rua do Vale Formoso. Muito obrigada.

E você, pobrezinha rua do Vale Formoso, hoje em dia mais valia ter nascido como rua do Vale Formoso de Cima, e estar mais longe do barulho e da sujeira do desenvolvimento urbano. Você, uma retinha polvilhada de prédios antigos e edifícios abandonados, pequena mas bonita, que nasce em Marvila e desemboca num viaduto (muito sem graça). Você, que era um sonho para mim despercebido em um horizonte estéril, uma cidade de faroeste tão pequenina e escondida, seguindo o rastro sem fim da linha de trem.

Mas, talvez, se ainda houver alguma chance desta rua ser pacífica e calma, como já fora, uma rua como uma mão de homem delicada e tão forte, que aguenta o balanço bruto de uma linha de trem e sustenta vasinhos de plantas nas janelas térreas dos apartamentos, que viu a fábrica de gás ser levantada como uma estação espacial alienígena, e talvez agora veja o seu desmonte, que nasceu exatamente por causa de melhoramentos e por eles mesmos ficou assim, decepada e flutuante no tempo... Talvez eu ainda queira, no futuro, morar numa casinha nessa mesma rua de prédios moderníssimos e arcaicos – e ver, numa carta residual, meu nome entrelaçado com o dela, como quem erroneamente retorna a um antigo amante.

Elisa Andrade Buzzo
Lisboa, 7/1/2021

 

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