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Quinta-feira, 4/2/2021
Assim como o desejo se acende com uma qualquer mão
Elisa Andrade Buzzo

Parece uma coisa e é outra; ou, é apenas o que é: este estado, esta calamidade que se desfaz no quebra-rio e se conforma novamente, em patos debicando vermes, em acampamentos com música nos parques, em formas de se entreter, em visionamentos passageiros nos entrepassos. O sol demora a se pôr, mas quando se inicia a sua despedida, ela é rápida, e as cores leves irradiarão no esfumado do horizonte entrecortado em céu e rio, em claros vermelhos, em um escuro cada vez mais profundo.

Correm ondas curtas, de pequeníssimos veios, se não são elas mesmas fonte de alimento dos pássaros, escorrendo no concreto de bloqueio artificial do rio, ou quebrando como pontos de imitação de verdadeira praia. E as bicadas dirigem-se para qualquer coisa que pareça comestível, assim como o desejo se acende com uma qualquer mão, com uma boca qualquer, como se não importasse o dono da boca, mas a sensação provocada por ela. O órgão em separado de seus próprios donos, apenas para a compensação de um prazer, pois é necessário o derrame de tudo o que fora guardado.

Debicar porções de vida, olhos esquivos e atentos, mãos geladas e pendidas, separadas do corpo e muito alvas e compridas como os gessos das estátuas públicas em depósitos. Em uma emergência que se cria em um repente, em uma gula que mal existia, em uma divergência consigo próprio, em um sentido que não existia, em um devido formato ignorado.

Uma urgência se instaura capaz de burlar qualquer estado, qualquer calamidade anunciada, pois enfim criou-se uma nova possibilidade, uma chance inescapável, diante da qual se ignoram os apelos e libera-se o impulso. Não há proibição possível para a decisão tomada antes mesmo que dela se tenha consciência. Quando damos por nós, lá está o pato prestes ao mergulho, depois do rasante voado.

Elisa Andrade Buzzo
Lisboa, 4/2/2021

 

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