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Quinta-feira, 21/3/2002
Cornos e burros
Adriana Baggio

Sabemos que, na prática, política não se faz como rezam as regras. A princípio, os partidos políticos deveriam ter uma base ideológica sólida e coerente, com propostas para a resolução dos problemas inerentes às organizações sociais, desde a direção de uma escola até a presidência do país. Cada partido escolheria a linha que achasse mais adequada, baseando-se na história, filosofia, economia, sociologia, antropologia e também no empirismo, para ajudar a definir uma plataforma de atuação política. Dentro desta lógica, o partido deveria ter em seus quadros candidatos alinhados e comprometidos com a plataforma para concorrer aos cargos eletivos. Se dois ou mais partidos têm uma base ideológica parecida, existe a possibilidade da formação de alianças, para que determinada proposta seja fortalecida e tenha mais chances na eleição.

A realidade é bem diferente. A maioria dos partidos tem uma proposta ideológica volúvel, e fica oscilando ao sabor do vento dos interesses; poucos candidatos comprometem-se com as propostas de seus partidos, pulando de um para outro por vários motivos, menos o de alinhamento ideológico. A gente sempre soube disso. E quando falo em “a gente”, quero determinar um universo pequeno, privilegiado, que consegue acompanhar e perceber os acontecimentos além do que a mídia mostra. Eu mesma não me incluiria neste grupo. Se hoje arrisco a escrever sobre o assunto é porque todas essas artimanhas estão cada vez mais aparentes. E é justamente isso que me incomoda.

Já não bastasse a maneira sórdida como o jogo político se arma, seus participantes perderam completamente a noção de decoro. Não existe mais a cortesia de tentar fazer as coisas por baixo do pano. A deturpação das relações políticas acontece às claras. Pode-se argumentar que as informações estão mais acessíveis porque a mídia tem tido um papel efetivo, divulgando de maneira mais ampla e profunda os acontecimentos, sem tanto rabo preso. Mas em geral, a imprensa só divulga aquilo que vêm à tona, que está à disposição para ser noticiado, ou que o lado adversário resolve “entregar”. É claro que existem exceções. Algumas bandidagens que realmente tiveram o mérito de serem orquestradas na surdina, foram desmascaradas por profissionais de imprensa idealistas e talentosos. Quando isso acontece, o público fica um pouco menos ignorante em relação às atitudes de seus representantes democráticos.

A minha impressão, no entanto, é que muitas atitudes consideradas escandalosas estão completamente expostas à mídia, sem que isso envergonhe seus protagonistas. Talvez seja a onda dos reality shows, onde a exposição faz desaparecer o pudor; talvez seja apatia da opinião pública, amortecida pela quantidade de absurdos que acontecem todos os dias; talvez seja a falta de medo de uma represália qualquer. Mas o fato é que os envolvidos nas mais recentes situações escandalosas não têm a menor elegância pública. A governadora do Maranhão e candidata à presidência da república, Roseana Sarney, não teve pudor algum ao reclamar que a polícia deixou de avisar antes de dar a batida que encontrou aquele monte de dinheiro em espécie em sua empresa. Como se fossem normais os privilégios que a classe política tem junto à justiça. Outros que não têm vergonha são aqueles que chiaram com as novas regras de alianças partidárias para as eleições. Como se fosse normal a promiscuidade entre os partidos, onde a formação ou rompimento de relações são baseados em interesses que passam longe das propostas ideológicas. Nessa mesma linha, o PFL sai do governo sem nem mesmo um leve rubor. Como se fosse normal apoiar durante 7 anos uma proposta de dirigir um país e de um dia para o outro sair com a desculpa esfarrapada de que não existe mais afinidade entre o partido e a base governista. Ou então o bode-marido expiatório da vez, que tem a pachorra de ler uma declaração que todo mundo sabe que não é dele, dando motivos estapafúrdios para existência de R$ 1,34 milhões em espécie e identificados em sua empresa. Ah, e dizendo que não deu nenhuma explicação antes por conta de uma terrível crise de depressão.

Pior do que ser traído, roubado e enganado, é ser chamado de burro. E é isso que tem acontecido conosco. Antes éramos enganados de uma maneira mais cortês, mais suave. Existia uma preocupação maior em esconder as tramóias da opinião pública. Fingia-se que não havia nada de errado, e a gente fingia que acreditava. Hoje não. Existe uma descompostura total, uma arrogância sem limites. É a certeza de tudo poder e de nunca ser atingido, nem pela justiça, nem pela opinião pública, nem pelo voto.

Aos trancos e barrancos, ainda sem a isenção devida, a imprensa vem tentando fazer sua parte. Divulga as mentiras descaradas que nos contam, com um leve ar de dúvida, mas não explícito o suficiente para ser acusada de culpar sem provas. Da mesma maneira a justiça, torcendo para que o ventilador não espalhe demais, vê-se obrigada a tomar uma atitude contra aqueles que protege. É quase como se dissesse: “por favor, sejam mais discretos. Se continuar assim, vou precisar fazer cumprir a lei. Pelo menos escondam esse dinheiro em algum lugar não tão óbvio, troquem as notas carimbadas por outras, dêem ouvidos quando avisarem que a polícia vai dar uma passadinha.”

A cortesia, essa qualidade tão desprezada na dureza dos nossos dias, deveria ter sua importância reconsiderada. Uma atitude cortês pode acalmar muitas crises. A atitude cortês mostra que a gente ainda merece algum tipo de respeito. Pode ser a diferença entre o casamento e divórcio. O cônjuge que trai, mas não tem a decência de esconder, além do mal de estar enganando, ainda desrespeita o outro. Ou está chamando-o de burro, ou está mostrando que não liga a mínima. É mais ou menos o que tem acontecido conosco. Não sabemos se estamos sendo chamados de burros, ou se nossas reações são tão improváveis que não vão surtir o mínimo efeito.

Por via das dúvidas, poderíamos passar a achar um absurdo as coisas que têm acontecido. A queda nas pesquisas eleitorais mostra que a candidata Roseana está sofrendo as conseqüências de sua prepotência de coronela. Por outro lado, aumentam os índices de José Serra. Até ele começa a ser cogitado como uma possível saída para um PFL desmoralizado, junto de nomes tão díspares como Silvio Santos ou Ciro Gomes. Pelo jeito não adianta nada mesmo. Enquanto não formos despudoradamente enganados novamente, vamos continuar com esse corno ideológico na cabeça.

Adriana Baggio
Curitiba, 21/3/2002

 

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