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Sexta-feira, 17/9/2021
Eleições na quinta série
Luís Fernando Amâncio

Ao chegar ao colégio em que cursaríamos os últimos anos do Ensino Fundamental, nós éramos apresentados à eleição de líder. Tratava-se de uma rara experiência democrática no alto de nossos dez ou onze anos. Através do voto, os alunos, sem interferência dos professores, escolhiam seus representantes estudantis.

Uma grande responsabilidade. Era dever do líder da turma buscar as carteirinhas dos colegas dez minutos antes do fim da aula. Além disso, o líder... bom, basicamente, ele só fazia isso. Quem exercia o cargo também era responsável pela turma se o professor precisasse sair. Mas nenhum adulto cometeria a sandice de autorizar uma criança a confrontar a desordem de seus colegas.

Ainda assim, ser o líder era importante. Afinal, nas carteirinhas, com um carimbo de PRESENTE, ficava registrada a nossa frequência na escola. Uma prova impressa e auditável para apresentar aos nossos pais se a calúnia de que tínhamos “matado aula” chegasse a eles.

Diante do poder que o processo democrático nos dava, seguíamos, basicamente, dois critérios para eleger nossos líderes: podíamos levar a eleição a sério e votar no estudante mais aplicado nos estudos – por algum motivo, pensávamos que boas notas ajudariam na função; ou votávamos no colega mais desordeiro da turma, como uma espécie de “voto de protesto”. Uma trollagem, como dizem os jovens. O constrangimento dos professores aturando um mal estudante como representante de turma nos divertia.

Da quinta à oitava série, sexto ao nono ano para os millennials, a subversão era ingênua e sem grandes consequências. Só uma piada de gosto duvidoso. Meus colegas, porém – e também seus pais, vizinhos, conges e etc – levaram a prática adiante. O noticiário me faz ter certeza: elegemos os piores estudantes para nos representar em Brasília. Uma trollagem suicida, escancarada no preço da gasolina e dos botijões de gás atualmente.

Afinal, presidente, ministros, deputados e senadores fazem bem mais do que apenas buscar carteirinhas na secretaria. As consequências ao ter representantes desordeiros nessas esferas são mais dramáticas.


Pode acontecer – e é só uma hipótese – de aparecer uma pandemia no meio do mandato. Aí, o líder deverá ter atitude responsável, tomar medidas rápidas e cabíveis. Se elegemos o pior aluno para a função, é possível que ele negue a seriedade da situação e atue com infantilidade, renunciando às recomendações sanitárias. Ou, talvez, ele não responda às fabricantes de vacinas para negociar, meses depois, com empresas de pastores e de lobistas amigos. Já pensaram que horror?

Também pode ocorrer – outra hipótese – de se anunciar uma crise hídrica, colocando em risco o abastecimento de energia elétrica no país. Então, precisaremos que nossos representantes sejam eficientes e tomem medidas de prevenção com antecedência, impedindo que a situação se agrave. E, claro, façam investimentos para amenizar a situação. Não vale onerar o consumidor depois que a catástrofe estiver prestes a acontecer.

Quando votaram no Tiririca e em seu “pior que está não fica”, havia uma tendência que muitos tomaram como anedótica. Uma subversão, como quando votavam no rinoceronte Cacareco nos tempos das cédulas impressas. Só que era mais sério do que se esperava.

Foi o princípio de um abismo. Quando ideologia, turbinada pelos algorítimos de Steve Bannon, se tornou pós-verdade. E a lógica em nossas escolhas políticas ficou em frangalhos. Nossas opções, desde então, parecem aleatórias. Como confiar a chave do cofre a um ladrão de galinhas. Ou, hipoteticamente falando, escolher um político de relações sólidas com esquemas de rachadinhas para combater a corrupção.

Você pode até dar o poder de buscar as carteirinhas da sala a uma pessoa incompetente. O risco de ela não dar conta da responsabilidade é menor, já que a função é simples. Agora, dirigir um país é mais complexo. Bem mais complexo.

A escolha não era, afinal de contas, tão difícil assim.

Luís Fernando Amâncio
Belo Horizonte, 17/9/2021

 

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