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Sexta-feira, 22/3/2002
Vidas Paralelas
Rafael Azevedo

Bom mesmo é ler Plutarco. Indispensável pra quem quer entender algo sobre a Antiguidade, é talvez dos escritores mais lúcidos da época, sabendo quando dispensar vulgaridades e superstições de então (ao contrário de Heródoto, que colocava no papel qualquer tolice que lhe contavam - até mesmo aquela história da Atlântida), e arguably o segundo melhor historiador da civilização greco-romana (ainda que ele não se considerasse um), perdendo para Tucídides e empatando com Tácito e o melhor biógrafo juntamente com Suetônio. Seu estilo é fluido, quase coloquial - apesar da insistência de algumas traduções brazucas em usarem um vocabulário Ruy-Barbosiano - e sua compreensão do que acontecia, e do que motivava tais acontecimentos, parece ser simplesmente completa, quase dois mil anos depois de sua obra ter sido escrita. Confesso que não gosto muito de uma certa "desordem" cronológica que ele adota, contando por vezes, no início do texto, passagens que deveria ter guardado para o final, e me aborreceram algumas repetições de frases e episódios; nada que incomode, e obscureça o brilho da obra deste grande homem. Afinal, numa época em que não existiam revisores, os livros eram escritos em pesados feixes de peles de carneiro com penas desengonçadas, acredito que até que as "falhas", se é que posso assim chamá-las, são poucas. Está em minhas mãos a mais recente edição de Plutarco em nosso país. "Alexandre e César". O livro saiu pela Prestígio Editorial, um selo da Ediouro, e faz parte de sua coleção Clássicos Ilustrados, a tradução de Hélio Vega e o prefácio do grande Mário da Gama Kury. A impressão é de excelente qualidade, o papel é de primeira, o texto tem letras grandes e é bem maleável, o que facilita a sua leitura. As ilustrações abundam em cada página, algumas até desnecessárias, encheções de linguiça. Mas isso tudo é decoração. O que importa é o recheio. Dentro, podemos conhecer praticamente tudo o que sabemos hoje sobre as vidas de Alexandre e César. Aliás, esta seria a proposta do autor, reunir biografias de diferentes personalidades da época lado a lado, para que fossem estudadas juntas. Denominou-as Vidas Paralelas, lançando 23 pares dessas biografias e mais algumas isoladas. Aqui no Brasil, devido à nossa herança lusitana, imagino, o Paralelas virou Comparadas. Plutarco não estabelece uma comparação sequer no livro inteiro; cada vida é como se fosse um livro à parte... Como eu dizia - praticamente tudo o que se escreveu ao longo da história sobre esses dois personagens usou, de alguma forma, estes textos. A peça de Shakespeare sobre o dictator romano tem partes praticamente idênticas à obra de Plutarco. Não que isso seja um demérito; muito pelo contrário, é sinal de que o velho Bill foi direto às fontes que possuía às mãos, e soube usá-las de maneira fenomenal. Entramos de maneira fantástica na intimidade destes personagens que mudaram o mundo que os cercava, e praticamente construíram a história tal e qual a conhecemos hoje. Apesar disso, ficamos sabendo que ambos eram seriamente desequilibrados. Vejamos por que.


Alexandre
Alexandre, o conquistador de quase todo o mundo conhecido então (seu império estendeu-se da Grécia a Índia, em "comprimento", e da atual Bulgária ao Egito, em "largura"), era um bruto, bárbaro de nascença (os antigos macedônios tinham um parentesco distante com os gregos, mas eram muito diferentes entre si, tanto linguistica como culturalmente); de índole instável e impulsiva, conquistou esse êxito nas campanhas muito mais graças a esse caráter, e à falange macedônica inventada por seu pai Filipe, do que a um planejamento meticuloso que absolutamente não existiu. Amostras dessa irresponsabilidade impulsiva pululam nas histórias que Plutarco nos traz, desde o célebre caso do Nó Górdio até o malfadado regresso de Alexandre da Índia, quando ele decide descer o Rio Indo para chegar até o mar conquistando e saqueando todas as cidades no caminho - e acaba com uma flecha cravada nas costelas. Não são poucas as orgias regadas a litros de vinho que seu exército realiza no trajeto de suas conquistas (que durou praticamente sua vida inteira); entre elas o célebre bacanal em Persépolis, onde a cortesã Taís lhe convence a tocar fogo no palácio de Dario, o que lhe enche depois de desgosto. Numa outra festa, em algum lugar do Afeganistão moderno (onde fundou duas Alexandrias, das quais uma sobrevive até hoje, Kandahar), quando após uma discussão forte cravou uma lança no abdômen de seu amigo de infância, Clito; e outra ainda quando estavam regressando da Índia, atravessando um terreno desolado, levaram sete dias continuamente em festa, bebendo, cantando e dançando enquanto marchavam pela Carmânia. Ao chegarem na Pérsia, Alexandre organizou um concurso para ver quem de seu séquito bebia mais - o vencedor, Prômaco, bebeu doze litros de vinho e morreu três dias depois, junto com mais quarenta e um "foliões". Imagino que a qualidade dos vinhos de antanho não devia ser das melhores. Totalmente paranóico, sua condição piorou no fim da vida, especialmente após o ferimento, o assassinato do melhor amigo e essa sucessão de bebedeiras. Começou a confiar exageradamente em premonições, sonhos, portentos, e adivinhações; já não fazia mais nada sem consultar um augure. "... completamente abandonado às suas fantasias supersticiosas, ficou tão perturbado, tão atemorizado, que as coisas mais insignificantes, bastando que se apresentassem de maneira um tanto extraordinária e estranha apareciam-lhe como sinais e prodígios. Seu paço (por que não "palácio"? Nota minha) estava repleto de gente fazendo sacrifícios, expiações e profecias..." É fato que as pessoas na época eram supersticiosas, bem mais do que hoje em dia, e realmente acreditavam no poder de tais coisas, ao contrário do mundo materialista que habitamos; mas o próprio Plutarco continua: "... não há dúvida de que, se de um lado a descrença e o desprezo da divindade são sentimentos criminosos, do outro a superstição é uma paixão ainda mais terrível!"


...e César
Plutarco era grego, e, como tal, afetava um desprezo desmedido por todos os outros povos; incluindo aí os romanos. Curiosamente, isso não transparece no texto sobre a vida de César; pelo contrário, demonstra uma familiaridade com os costumes, as pessoas e instituições, e até mesmo um respeito total pelos romanos. Suspeito que isso se deva ao fato de que a grande maioria dos gregos sábios do tempo de Plutarco(primeiro século de nossa era) havia sido levada da Grécia para Roma para serem professores e tutores dos filhos dos nobres romanos, numa condição de semi-escravidão que só era vencida com muito esforço; talvez Plutarco, como tantos outros, não quisesse desagradar os novos donos do mundo.

O fato é que o desequilíbrio de César era mais brando que o de Alexandre, mais controlado. Por isso é que César foi quem foi, foi o que foi; é considerado por muitos leigos até hoje como o maior imperador romano, mesmo sem nunca ter sido imperador, seu nome tornou-se sinônimo de poder absoluto, tanto que todos os imperadores tiveram o sobrenome César acrescentado a seus nomes, e os títulos dos imperadores de várias nações européias foram baseados neste título primordial: O Caesar acabou virando Kaiser, Czar. Mas o Jotacê não era um fanfarrão impulsivo cheio de testosterona como Alexandre, era uma pessoa culta, patrício, ou seja, de família romana antiquíssima (podiam supostamente traçar sua linhagem à deusa Vênus), de educação tradicional, era um hommes à lettres, político por vocação, que segundo Plutarco "nascera com as melhores disposições para a eloquência política, cultivara com extremo cuidado - dizem - esse talento natural." Ainda segundo Plutarco, ocupou o segundo lugar entre os oradores de Roma, perdendo obviamente para Cícero, em minha humilde opinião o maior gênio que a civilização romana produziu. Mas César tinha uma boa justificativa para isso (como parecia ter para quase tudo): "renunciara ao primeiro [lugar], preferindo a essa glória a superioridade assegurada pelo poder e pelas armas. Distraído por outros cuidados, não alcançou na eloquência a perfeição que lhe reservava sua própria natureza: dedicou-se unicamente aos trabalhos militares e ao manejo dos negócios políticos, que o elevaram ao supremo poder. Por isso, na sua resposta ao Catão de Cícero, muito tempo depois, roga aos leitores que não comparem o estilo de um homem de guerra com o de um orador hábil, que podia ocupar-se com vagar dessa espécie de estudos." E na política, que equivalia muitas vezes à arte da guerra, naqueles tempos turbulentos do fim da República Romana, ele se superou, e concedeu ao próprio nome a fama que ele hoje o tem. Foi o primeiro romano a levar uma tropa à ilhas bretãs, sem conquistá-las mas conseguindo um tributo dos reis locais, adquiriu boa parte da Espanha, incluindo o território de Portugal, conquistou inúmeras tribos celtas e germânicas que atormentavam as fronteiras do império, apaziguando por centenas de anos as regiões fronteiriças onde hoje se localizam a Suíça, o sul da Alemanha e a Bélgica e a Holanda, conquistou a Gália, hoje França, sua maior obra - registrada no livro De Bello Gallico, que muitos desprezam como propaganda e um dos livros mais chatos já escritos - isso para ficar apenas no Ocidente. No Oriente, conquistou o Egito, colocando Cleópatra no poder no lugar de seu irmão (dela), derrotou o infame Mitrídates, que atormentava os territórios de Roma ao redor do Mar Negro, apaziguou a região da Macedônia, sacudida por revoltas, e finalmente trouxe para o jugo de Roma o Norte da África, que encontrava turbulento desde que Pompeu, na Guerra Civil que fizera contra o próprio César, aliara-se ao rei local, Juba. Não foi pouco para menos de sessenta anos de vida, e ele tinha planos para muito mais.

Mas foi precisamente nessa sede de poder, nessa ambição, que manifestou-se o nefasto desequilíbrio em César. Lutou, em vida, pelo poder a qualquer custo, muitas vezes exaurindo as últimas forças das tropas que comandava. Em certa ocasião, liderou a mesma tropa, durante anos, em batalhas no Egito, no Mar Negro, e no Norte da África, contando com apoios externos esporádicos. Era quase sempre magnânimo, no entanto, perdoando, quando tinha algum interesse, aqueles que o ofenderam, e sendo cruel com os que nada tinham a lhe oferecer, como por exemplo uns piratas que certa vez lhe sequestraram nas águas do Mar Egeu. César lhes falara por várias vezes, em tom jocoso, que lhes executaria; divertia os piratas, jogava com eles, até que quando foi solto, organizou um pequeno exército, capturou-lhes a todos e crucificou sem dó, um por um. Podem-lhes ser creditados atos de extremo ímpeto, e força; como diz o verbete da Britannica sobre ele: "Caesar was not and is not lovable." Mas jamais foi covarde; arrependeu-se profundamente por várias vezes, como por exemplo, quando soube da morte de Pompeu, seu mais célebre inimigo, ou quando, após derrotar os filhos do mesmo Pompeu que se revoltaram, anos após a morte do pai, na Espanha, foi-lhe trazida a cabeça de um deles. Essa era, aliás, uma de suas grandes virtudes: saber valorizar seus inimigos, e nutrir por eles um respeito acima do normal.

Júlio César foi, no entanto, inadvertidamente, responsável por uma das grandes desgraças do mundo antigo, algo que dificilmente poderia ser perdoado por qualquer outro feito de sua vida: ao incendiar sua frota, que os egípcios ameaçavam tomar, fez com que o fogo tomasse conta da famosa biblioteca de Alexandria, que ficava ao lado do porto, e foi completamente destruída. Quanta coisa a humanidade não perdeu neste único dia?


Falha vossa
Nenhum erro grave, mas algumas simplificações até certo ponto grosseiras, como a nota de rodapé que transforma Ahura-Mazda, deus supremo e único da religião zoroastrista, dos persas, e representante metafísico das forças do bem na Terra, em "Oramasdes", "Nome dado ao Sol pelos persas."
A célebre cidade de Ecbátana acabou virando Ebatana, e o Ponto Euxino, antigo nome do Mar Negro, virou o Mar Cáspio, segundo o tradutor. O mais estranho é que logo após cometer este último erro, o tradutor menciona o Mar Cáspio pelo nome que era conhecido na época, Hircano; percebe-se que seguramente foi desses pequenos deslizes, que credito à distração. No fim do "César", o filho adotivo de Júlio, Otaviano (futuro imperador Augusto) é chamado também de César por Plutarco, o que acarreta uma certa confusão. Acho que teria sido mais vantajoso ao tradutor colocar ali uma nota explicando isso ao leitor, ou menos mudar o nome para evitar confusão ao leitor mais desavisado (leia-se burrão).


Graaaaande Alexandre...
Alexandre simboliza o apogeu e, paradoxalmente, o fim da civilização grega. O seu ápice porque foi ele quem levou a língua e a cultura dos helenos para um território muito mais amplo, "grecizando" o Egito, a Ásia Menor e a Fenícia, e impondo-lhes valores culturais que perdurariam firmemente até as conquistas árabes; mas também o fim, porque com o advento de Alexandre no cenário, e a conquista das cidades-estado gregas por ele, jamais Atenas, Esparta, Tebas ou qualquer outra das famosas polis voltariam a ter o destaque que tiveram, e passaram a ter de se contentar com o eterno papel de coadjuvantes, sob o jugo de algum império estrangeiro. "A Grécia deixava aí de ser uma potência". Alexandre, era macedônio, e tinha precisado provar seu valor para ser aceito pelos gregos como defensor valoroso da Hélade e representante de sua cultura ante os bárbaros persas que se aproximavam. Mas depois dele, e do colapso do império que ele legou, a Grécia jamais conseguiu se recuperar, e pouco tempo após a morte de Alexandre acabou sendo conquistada por Roma, onde era mais como fonte de preceptores e filósofos para a capital do mundo (cujo valor social era equivalente ao de um escravo médio) do q o epicentro da grande civilização que seus valores representaram.

Rafael Azevedo
São Paulo, 22/3/2002

 

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