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Terça-feira, 26/4/2022
Ser e fenecer: poesia de Maurício Arruda Mendonça
Jardel Dias Cavalcanti



O poeta Maurício Arruda Mendonça lançou o livro Luzes de Outono (Editora Koter), onde reúne sua produção poética de 1983 até 2020, com aproximadamente mais de 170 poemas, que é a soma de seis livros.

Chama a atenção na produção de grande parte dos poemas de Arruda um traço comum, que é a junção de elementos contrastantes num mesmo poema. O contraste, de caráter filosófico (se assim posso dizer), marca a relação tensa entre o Ser e o fenecer. Como uma espécie de consciência aguda entre o Ser e seu caminho para o Nada, tece-se a referida tensão, que faz comungar desalento, melancolia e mal-estar no mundo. É o que veremos na sequência de poemas que comentaremos na brevidade desta resenha. Quatro versos são singulares nesse sentido: “a geada queima/ a flor mais pura// nada a não ser/ este repentino fenecer”. Traça-se aqui o rumo dado pela natureza, que cria e, ao mesmo tempo, faz fenecer, inesperadamente, o que é belo.

No poema “Juvenília” também o poeta aferra-se a essa tensão, significativamente gerando “medo” como consequência da destruição pelo tempo: “O tempo incinera/ A juventude que era/ Feita de sonho e segredo// Aqui dentro esse medo/ o silêncio que fere/ a solidão, essa fera.”

No poema “Espinosa” retoma-se a ideia de efemeridade, que se sobressai como resultado da experiência do engano e da desistência: “um erro é perceptível e vegetal assim,/ nos une aos atributos do efêmero/ (...)as coisas então desistem/ de reiterar sua existência, de persistir em enganos”.

O desconforto de quem luta contra “o mal do tempo” e “os lamentos da matéria” se dá num poema sem título, que reproduzo à seguir: “Nem sei o que dorme na alma hoje/ esse desconforto traiçoeiro/ o não estar em paz que me persegue/ embora eu lute contra o mal do tempo/ talvez não devesse sentir tanta tristeza/ deixar pra lá os lamentos da matéria/ enquanto ando eu sopro as nuvens/ dos meus velhos sonhos pra mais longe.”

Também o pensamento sofre as consequência do seu fracasso, assaltado que é pela melancolia. A ideia de ruína - e da impossibilidade de se controlar a história, feita da perda do que poderia ter sido - aplicada ao pensar e suas limitações, produz um belíssimo poema em prosa, “Vultos da noite”, que expressa essa sombria condição de desalento:

“Quem se sentiu naquele limite extremo e prosseguiu pelas ruas escuras do pensamento, vila demolida, lua arrasando quarteirão. Vinha voltando, vomitando a biles negra da bebida, vertigem obsessiva, como uma floresta aberta a fogo ou um cinema destruído. O revólver da melancolia me assaltou, e, mirando um ponto distante no tempo, fez-me pensar sobre tudo o que na história poderia ter sido e que deixamos para trás, como uma roupa virada do avesso, sonho de um dia riscar a lataria do céu.”

Os poemas de Arruda são muito imagéticos, transmitindo as tensões do “ser no mundo” pela via da construção plástica, como no exemplo seguinte: “Folha soluçando no galho/ quase primeira geada”. O exterior da natureza nos levando a pensar no sentido interior da existência. E, de certa forma, constantemente estas imagens estão banhadas em delicada e/ou sombria melancolia, como é o caso de outro poema em prosa, “Old Pitman´s blues”, onde o saxofonista americano que viveu em Londrina transforma-se num vulto noturno refletido na calçada.

É evidente que nem só de galhos secos e folhas queimadas pela geada – essas alegorias da melancolia – vive a poesia de Arruda. O pequeno espaço da resenha me fez optar por uma vertente dentro de uma obra longa, com entradas e saídas diversas, que o leitor poderá percorrer parando mais detidamente nos universos de seu interesse.

O livro Luzes de Outono reúne não apenas temas variados como ruínas, amor, desalento, prazer etc, mas experiências múltiplas com a linguagem, seja nos poemas em prosa ou poemas experimentais, onde as palavras atravessam a página num dançar daqui para acolá, e um ou outro poema próximo ao hai-kai.

Os caminhos da vida urbana, entre bares, luas na sarjeta, amores e absinto, fazem da poesia de Arruda um perambular entre o desejo e sua desilusão, entre o viver e as decepções da vida, alegorizadas, muitas vezes, como já disse, na percepção aguda do movimento do viver e fenecer da natureza.

Um náufrago de si mesmo, como diz em certo poema, o poeta, no fim das contas, fala de um mundo e de experiências comuns aos homens contemporâneos, filtrados pela luz outonal da poesia.

Maurício Arruda Mendonça acaba de ganhar o prêmio da Biblioteca Nacional por seu ensaio sobre Kafka e Schopenhauer. São autores importantes para a modernidade, tal como Nietzsche. Como leitor desses desconstrutores da tradição e construtores do desalento moderno, o poeta não poderia ficar imune às suas interrogações sobre a existência. Há, portanto, muito do que se apresenta nesses autores estudados por Arruda em sua poesia. A dura travessia nietzschiniana do animal ao superhomem talvez seja impossível, por isso nossa angústia e desalento existencial. A poesia, talvez, seja o SIM exigido por Nietzsche para que a vida ganhe um sentido para além de si mesma. O poeta é quem melhor faz a travessia, e vamos seguindo seu caminho.

Jardel Dias Cavalcanti
Londrina, 26/4/2022

 

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