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Terça-feira, 26/4/2022
Lá onde brotam grandes autores da literatura
Renato Alessandro dos Santos

Há algo de extraordinário na literatura de Aldino Muianga, como o há, na mesma medida, na obra de grandes autores africanos de expressão portuguesa. Durante e logo após a leitura, fica difícil precisar o quê, mas, aqui, até o final destas mal ajambradas considerações, espera-se, esse elemento nebuloso há de emergir. São sete narrativas curtas que O domador de burros e outros contos (Kapulana), primeira edição brasileira do autor moçambicano, traz.



Quem conhece um pouco de Mia Couto, ou mesmo do nosso Guimarães, vai perceber tanto o inusitado uso de vocábulos quanto a inversão de elementos na estrutura da frase, isto é, adjetivos que precedem substantivos ("O fermentado corre para dessedentar e relaxar disfarçadas tensões", p. 87), bem como a linguagem poética que, feito um monjolinho, picota o curso da água, lapidando arestas igual crianças com massinha de modelar.



Ficasse só nisso, já seria motivo de arrebentação, mas Muianga tem a oferecer mais, tal o diagrama que os sete contos fazem do espaço ("Moçambique revisitada") e do tempo ("Moçambique colonial"). Há o insólito e o fantástico ("O estivador"; "Djossi, o crocodilo"), dupla colonização feminina ("O filho de Riquelina"; "A rosa de Cariacó"), colonialismo ("O domador de burros"; "Djossi, o crocodilo"), diáspora, tradição, memória e identidade em todos os contos deste volume.

Tudo exposto ao senso crítico que a escrita de Muianga carrega como uma candeia (para se agarrar quando escurece). Tudo sublinhado por um dossel que, como topiaria, faz a jardinagem do texto criar criaturinhas que ganham condições de se impor, e de agir, diante dessas situações que chegam para desapaziguar a vontade do corpo e do espírito.

Algumas dessas pequenas narrativas deveriam ser como um cartão de visitas colocado na mão do leitor, para convidá-lo ao deslumbre das literaturas africanas de língua portuguesa - tipo esta pequena maravilha, deste livro de Muianga, que é "O filho de Riquelina".

Nesse conto, um homem torna-se incapaz de engravidar a esposa. Culpa os mortos, maldições, mandingas. Abre-se com um amigo e, afundando, vira o assunto que repercute na boca popular, pois o "amigo" vulgariza a intimidade que corre nas veias off-line do casal.

E, então, Riquelina engravida, para surpresa de todos.

E o marido, que vai ser pai, vê-se iluminado, de repente, por uma luzinha que se acende na varanda de seu coração, sem contar que, na comunidade, seu nome e seu clã, vergando ambos sob o peso da tradição, sairão recompensados com essa gravidez.

Só há um problema: Riquelina vai morar com o amigo do herói, e tudo desmorona. O expediente atinge o alvo, daquela mesma maneira profunda que somente a literatura consegue, surpreendendo os leitores, que, estupefatos, poderão apenas rabiscar, a lápis, ao lado do último parágrafo do conto um borbulhante ponto de exclamação.

É assim que o ex-tra-or-di-ná-rio, aquele, lá do parágrafo primeiro, chega agora, nesta conclusão aqui: o que Muianga sabe fazer é contar uma história, cativando seu leitores, isto é, eu & você, que em troca passamos a ter uma percepção de que a África, além de ser um continente onde a dentição humana fez do lugar ancestral uma flor rompendo o asfalto, é pasto onde brotam grandes autores da literatura, como Aldino Muianga, esse universal escritor que transborda imaginação.

Renato Alessandro dos Santos
Batatais, 26/4/2022

 

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