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Quinta-feira, 19/1/2023
Gatos mudos, dorminhocos ou bisbilhoteiros
Elisa Andrade Buzzo

Dos tantos gatos que se cruzam com nossa vida, há alguns que surgem rápida e repentinamente, serpentinas que se lançam por cima de nossa vista. Talvez sejamos brinquedos moventes, espécies de passarinhos que entretanto não voam, que os felinos não podem agarrar, estando eles trancafiados por vidraças ou telas. Ainda havia um resquício de verão quando um gato todo branco no topo de uma casa visualizou a presença de um humano, conhecendo aquela cidade californiana pela primeira vez. Seu olhar tinha a insistência dos velhos moradores das pequenas cidades, indiscretos em tentar vasculhar, por uma fresta de cortinas amareladas pelo tempo transcorrido no deserto das horas, algum indício de vida diferenciada no desconhecido transeunte estrangeiro.

Contrariamente, certos gatos não nasceram com a sanha pela caça confortável, não são bisbilhoteiros natos, nem mesmo adquiriram um comportamento exibicionista – alinham-se no esplendor do encosto do sofá, dando o espinhaço e o rabo, porém escondendo a cara. São os típicos gatos de apartamento, como nós, preocupados com o mínimo de ruído e com o máximo de ventilação natural, com a quantidade exata de sol, acomodados com tecidos e veludos adequados, a despeito de ventiladores de teto azucrinando as peles mais recatadas. Temos sede de continuar cuidando da nossa vida doméstica, um pouco alheios, seríamos, aos movimentos da rua, ao minúsculo beija-flor e aos monstruosos corvos, desinteressados que parecemos ser pela passagem de mustangs vermelhos, chargers cinzas e porsches azuis cintilantes.

Já devo ter insistido em chamar a atenção de certos gatos, coisa inútil; e agora, se calha de a vista os atingir em cheio, é quando, em caminhos tortos de esquilos e espinhos, por vezes descubro numa janela alta e iluminada uma silhueta macabra. Ou então, em noites aparentemente tranquilas em ruas estreitas, vejo-os com considerável distração e distanciamento, como quando um sagrado da birmânia felpudo, de olhos lânguidos e pelagem clara, competia por espaço com uma estrela natalina. A bem dizer da verdade, sinto falta, talvez, de descer de minha casa e, do ponto de ônibus logo em frente, vistoriarmo-nos mudamente os dois, gato e gente, nariz e fuça, ambos fustigando o ar e tomando conta de nossos afazeres.

Elisa Andrade Buzzo
Irvine, 19/1/2023

 

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