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Quinta-feira, 16/3/2023
As fitas cassete do falecido tio Nelson
Elisa Andrade Buzzo

As fitas cassete do tio Nelson que se salvaram foram na verdade apenas duas, as quais chegaram até mim de maneira desconhecida e desconexa; e por muito tempo elas instalaram-se ora guardadas numa caixa de papel do Boticário, ora no toca-fitas portátil do meu escritório adolescente. Se fosse possível, coisa das antigas, furar um disco de tanto ouvir, poderia na mesma ser provável esgarçar uma fita magnética enrolada de tanto mecanicamente a reproduzir. Tanto foi o caráter de adoração daquele conteúdo, que se iniciou a indagação de como teria sido ele registrado em forma de imagem. Assim, a imaginação correu ansiosa e árdua pela tela preta de uma memória inexistente, à cata de, munida apenas do som, penetrar no clima daquelas gravações ao vivo, sobressaídas pela intensidade de palmas e pelo encadeamento das canções.

De tal modo que, já na era do YouTube e afins, ao encontrar vídeos desse “Elis Regina Montreux Jazz Festival” (1982), primeira gravação póstuma lançada de Elis Regina, qual não foi o deleite em assistir àquelas imagens coloridamente gastas, sentir a falta de ar-condicionado na pele suada dos intérpretes e no rímel borrado da cantora. E ainda enxergar o figurino de cores fortes, a flor no cabelo de Elis, uma marca à la Billie Holiday. Chego a pensar se teria sido melhor de alguma forma ter mantido apenas o registro escuro e fundo da fita cassete, a visualizar alguns detalhes da apresentação. É uma questão a que eu não pude chegar a uma resposta. Na outra fita: o show “Chico Buarque & Maria Bethânia ao vivo” (1973), no Canecão. Deste, parecem restar apenas algumas fotografias, que, curiosamente, adquiriram uma espessura de imagem em perpétuo movimento, na cadência das tantas horas noturnas escutadas: o show se canta e se imageia sozinho. E como foi, afinal, que tudo aquilo se passou à conturbada época? Só mesmo os cantores e os músicos para dizer daquela energia eufórica no palco, e o público, que a presenciou, testemunha daquele dueto impressionante.

Além dos presentes fonográficos que recebemos sem que o doador deles saiba, há ainda aqueles que recebemos propositalmente, no calor das amizades dos anos ginasiais ou pré-universitários. Eles se incorporam em nossa vida com maior intensidade em alguns momentos, embora se tornem imprescindíveis com o passar do tempo. A produção musical da juventude de Chico Buarque, as colaborações com o Quarteto em Cy, em fitas descritas com paciência à mão; ou então, duas fitas emotivas do Legião Urbana, uma azul, outra amarela, não sei por qual motivo... E nestas últimas semanas, ao reescutar (em ritmo já defasado de iTunes) alguns álbuns, como esse do Chico, fico imaginando o que mais poderia ter na maravilha da biblioteca desmembrada do meu tio, na retumbância do restante de sua coleção de LPs e cassetes... E reflito sobre como talvez eu tenha sabido muito sobre o tio Nelson - que bom gosto, que capricho no armazenamento de seus badulaques, que antenado com o seu tempo -, que não cheguei a conhecer em vida.

Elisa Andrade Buzzo
Irvine, 16/3/2023

 

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