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Sexta-feira, 30/6/2023
Do chão não passa
Luís Fernando Amâncio

Semanas atrás, eu caí na rua. Eu gostaria de alegar que algo me empurrou, que alguém me deu uma rasteira ou, quem sabe, que uma placa tectônica se mexeu, naquele exato momento, bem debaixo dos meus pés. Mas seria mentira.

Como dizem os antigos, eu caí de maduro. Era uma descida íngreme, é verdade. E eu carregava algum peso ― minha filha entre eles. Porém, não há desculpas. Meu tornozelo se torceu, caí de joelhos e bati um cotovelo.


Fiquei todo ralado, mas a criança, podem ficar tranquilos, saiu ilesa do episódio. Talvez um pouco perplexa por presenciar uma cena tão patética. Um corpo caindo gratuitamente.

É triste. O natural é o ser humano ter apreço por si mesmo. Sentir-se o tijolinho mais brilhante do muro. Especial. É por isso que ajeitamos os cabelos diante do espelho, conferimos se há algum alface entre os dentes. Nos perfumamos, compramos roupas bonitas. Porque nos achamos distintos.

Lembrei das Olimpíadas do Faustão. Corta para o passado. Na minha família, era tradição: quando o crepúsculo avançava sobre o domingo, disputávamos, palmo a palmo, espaço no sofá. Diante de nós, na TV, os comentários de Fausto Silva embalavam a jornada incômoda dos heróis populares.

As provas eram as mais esdrúxulas. Surfar numa prancha giratória e voadora; correr através de portas que podiam, ou não, se espatifar; lutar com cotonetes gigantes; e, o maior sucesso de todos, atravessar “A Ponte do Rio Que Cai” ― trocadalho maroto com o título do filme A Ponte do Rio Kwait.

Nessa prova, os atletas diziam seu nome, ou apelido, e disparavam por uma ponte estreita e oscilante, sendo alvejados por disparos de canhões. A graça, evidentemente, era ver esses participantes despencando na piscina dos estúdios Globo. Afinal, todo mundo ri ao ver um igual se estrepar ― não por acaso, o quadro seguinte eram as “Pegadinhas do Faustão.

Eu, porém, ia na contramão. Gostava de ver alguém vencer. E de adivinhar, no princípio da prova, qual seria o atleta que cruzaria triunfante a ponte. Eu queria ver vencedores, me sentia frustrado quando ninguém ganhava o cheque dado pelo patrocinador.

De certa forma, era com os campeões que eu queria me identificar. Retornemos para o presente. Cair estupidamente na rua me fez refletir sobre quem eu seria na “Ponte do Rio que Cai”. E não há dúvidas: eu seria daqueles que perdiam o equilíbrio antes mesmo de ser acertados por uma bola. Afinal, numa tarefa básica para quem possui pernas saudáveis, consigo fracassar. E me esborracho no chão.

Foi aí, amigos, de tanto tripudiar de mim mesmo, que vi o brilho esmeraldino da esperança. Apesar dos joelhos machucados e de, consequentemente, andar como um robô enguiçado pelas ruas. Cair na rua e me imaginar um competidor fracassado das Olimpíadas me lembrou de manter as expectativas mais baixas. Pelo bem da minha felicidade. Foi libertador.

Pra quê almejar o Nobel da Física se às vezes a gente falha nas tarefas mais básicas da própria física? No meu caso, um tropeço simplório na gravidade.

A meritocracia nos engana com essa história de que existem pessoas melhores, mais esforçadas do que outras. É mentira. A vida está mais para aquelas provas de natação de crianças. O primeiro colocado e o último recebem as mesmas medalhas de participação. E ninguém é premiado com o cheque do Bamerindus. Se esborrachar em algum momento é normal. Chegar no fim do dia inteiro ― ou, ao menos, com todas as partes fundamentais em funcionamento satisfatório ― é a verdadeira conquista que devemos celebrar.

Luís Fernando Amâncio
Belo Horizonte, 30/6/2023

 

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