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Terça-feira, 25/7/2023
Ultratumba
Renato Alessandro dos Santos

“Aníbal só ouvia os lamentos, não respondia. Nem o outro estava preocupado com isso, queria é que ele o ouvisse, pois se tratava dum antigo responsável, excêntrico é certo, mas para sempre ligado aos que tinham algum poder para mudar as coisas”.

Aconteceu em Angola: o país suportou 400 anos de exploração colonial, esperando que as coisas viessem a mudar e, quando o colonizador foi expulso com um piparote, elas mudaram, mas, em 1975, outra guerra surgiu e, até o fim dela, em 2002, o que era euforia virou outra coisa; virou desencanto: uma letargia que parecia trazer um futuro descorado, incapaz de alterar a desordem que restou pelo caminho.

“Foi mesmo o que lhe disse às tantas, o camarada conhece a situação, devia ir lá acima explicar-lhes o que se passa, o povo está a sofrer demais”.

É um trabalhador que está a lamentar o estado das coisas com Aníbal, um dos responsáveis pela mudança de direção que o país tomou após os anos de luta armada (1961-1974), os quais puseram um ponto-final à gula tuga no além-mar africano. Nesse período, com a dominação já botando as tripas de fora, até cidadania portuguesa foi ofertada a angolanos que, deslumbrados, concordaram em recebê-la como prenda: foi-se de assimilado a assinalado, enquanto o sangue escorria cizânia adentro.

“O Sábio achou inútil tentar mostrar-lhe que não resolveria nada, a engrenagem estava montada de tal maneira que até tipos sinceros ainda com responsabilidade não sabiam como fazer para dela escapar”. A página é a 286 de A geração da utopia, de Pepetela, lançado aqui pela LeYa, em 2013, e a engrenagem é só uma forma de expressar a insatisfação com a máquina do estado que, como tem de ser, mói, tritura e faz sangrar aqueles que descem, enquanto sobem outros, incólumes, ilesos, num happy hour sem escala.

Alguém dúvida? Leitora? Leitor? Pessoal?

E, se há dez anos as literaturas africanas de expressão portuguesa já andavam em alta no Brasil, em 2023, elas continuam mais céle(b)res ainda, com leitores dispostos a recebê-las de braços abertos, especialmente agora nesta imprescindível onda progressista que, resistindo, no gerúndio, vem iluminando nossas letras contemporâneas, como se lê, por exemplo, em uma obra como Torto arado (2019) que, na literatura brasileira, é só a ponta da cubata.

Mas vamos voltar às páginas do romance de Pepetela.

A geração da utopia divide-se em quatro partes: A casa (1961); A chana (1972); O polvo (abril de 1982) e O templo (a partir de julho de 1991). Nelas, vai-se da utopia à distopia, ou do encanto ao desencanto. Começa na década de 1960, com africanos residindo na Casa dos Estudantes do Império e nas cercanias de Lisboa, e termina quando o alvedrio dos anos iniciais do período pós-independência resultou, nos anos 1980, em um malogro em que a felicidade, dificilmente, encontrava ressonância nas ruas de Luanda, ao fim daqueles anos de uma Angola que renascia. O desencanto alcançava a política, a economia e a sociedade que, segmentada, tinha em seus excluídos uma realidade marcada pela falta de tudo: mercadorias, liberdade de expressão, educação, saúde, humanidade.

Nesse cenário, deslizam personagens que, dispostos a retomar as rédeas do país, se lançam a semear a luta armada. É um bater sem assoprar assustador, e tendo Frantz Fanon não como pomba gira, mas como bomba gira, tal a interpretação incendiária que um dos revolucionários faz das ideias dele. É a geração da utopia, com personagens de caráter volúvel, como Vítor, Malongo e Elias, e outros, já mais fadados à ética pautada pela integridade, como Aníbal (o Sábio) e Sara. Todos eles ficam presos, de uma forma ou de outra, à guerrilha, à qual aderem manuseando fuzis AKA no embate minado entre angolanos e tugas, durante a Guerra Colonial (como vista pelos portugueses) ou a Luta pela libertação (como interpretada pelos de casa, aqueles que nasceram como alvo da artilharia europeia).

É admirável a postura ideológica de Aníbal, que, após sua fase de guerrilha, não se deixa levar pelas benesses trazidas pelo pós-colonialismo, quando angolanos nada altruístas, na maior cara de pau, viram-se no direito de requisitar, aos próprios umbigos, privilégios nababescos, exatamente privilégios contra os quais lutaram. É o caso de Vítor, que, na juventude flamejante, foi fustigado pelo lume revolucionário, mas que, em seu outono desbotado, vira ministro, e, bem-recebido no clube, recrudesce as fileiras do governo corruptor, enriquecendo seus dedinhos de forma ilícita e longe, muito longe, do pensamento libertário que defendia em seus tempos de faculdade, naqueles dias conspiratórios na famosa república de estudantes africanos em Lisboa, onde os inquilinos, na penumbra, montavam mirabolantes planos de revolução contra os proprietários salazaristas.

O choque de posições políticas é mostrado por Pepetela; ele que, em 1980, aos 39, publicou o libelo político-literário que se ergue a edificar o ser, mexendo e remexendo em angústias, temores e indecisões que toldam de escuridão a cabeça de combatentes, como os que lutaram pela independência angolana, e isso é Mayombe, e então, 12 anos depois, aos 51, publica A geração da utopia (1992), cujo foco debulha não mais o ser, mas o ter, com sua beligerância arrivista e seu desencanto sombrio a realçar a opacidade que se abateu sobre uma geração que pegou em armas e foi tentar explicar Marx aos aldeões, e, excetuando-se alguns, seria difícil encontrar outro Sem Medo, o Prometeu africano eloquente e com sua integridade capaz de ofuscar as trevas que a peleja armada na floresta do Mayombe exigiu.

E, após a leitura de A geração da utopia, é a imagem austera de Aníbal, este outro Sem Medo, que permanece em nós como personagem que parece trazer, dentro de si, afinidade com o Pepetela guerrilheiro-autor, em carne, osso e pestanas. É por esse motivo que a imaginação que habita este trapézio aqui em cima acredita que há, sim, muito da visão de mundo do autor no personagem Aníbal, que não se vende, nem a si e muito menos aos outros, e que, por isso, é visto como louco por seus companheiros de geração, umas ratazanas com as quais ele não mais convive e que não entendem por que ele nem sequer cogita dividir com eles a pizza angolana lá dos 1980, quando nada mais restava do espírito guerrilheiro romântico de partilha que, na selva, significava alteridade. Essa certeza amplifica-se na última parte do romance, O templo, que é a prova escarrada desse cruz-credo sem fim vivido pelos angolanos pobres, com aquela interseção sorrateira entre fé, dinheiro e baixa religião.

Aconteceu em Angola.

Meninos, e meninas, e +: do ser ao ter, uma geração não vingou, ficando pelo caminho... Desolada (a nação) e devastada (a alma), toda a colheita deitou os sonhos por terra, e A geração da utopia é só uma das maneiras que a literatura angolana encontrou para nos dizer isso.

Nota do Autor
As fotos utilizadas neste texto foram publicadas originalmente na página do Comitê Internacional da Cruz Vermelha.

Renato Alessandro dos Santos
Batatais, 25/7/2023

 

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