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Quarta-feira, 3/4/2002
Evoé!
Rennata Airoldi

Desde que Téspis, numa festa dionisíaca, cobriu-se com uma pele de animal e disse: "Eu sou Deus" , criou-se um rito, criou-se o ator, e no momento em que todos à volta pararam para assistí- lo, surgiu o Teatro. Espectador, ator, comunhão. Claro que aqui há uma história que a história conta sobre o primeiro ator de todos os tempos, mas não vamos nos apegar aos mínimos detalhes.

Tudo isso é só para falarmos desta arte, a arte do fazer teatral. O lugar onde ela se desenvolve, o templo sagrado chamado Teatro e todos os detalhes que envolvem este ritual que começa a ser "teatro", propriamente dito, a partir do encontro final: ator e espectador. Só a partir desse encontro neste templo é que temos o espetáculo teatral. Digo "templo" mas não precisamos limitar isso a uma caixa preta, um palco italiano. O espaço é determinado a qualquer hora, em qualquer lugar, desde que o ator se coloque e suas ações corporais e ou vocais sejam assistidas por um ou mais, de preferência muito mais, espectadores.

Muitas vezes me pergunto se o teatro vai morrer um dia. Desde a Grécia antiga, o ritual persiste e resiste apesar das crises, guerras e da evolução tecnológica. Talvez porque as relações humanas continuem bem parecidas. Os sentimentos e o olhar do homem sobre ele mesmo e o mundo ao seu redor, faz com que a arte teatral se renove com novos espetáculos, novos textos, novas linguagens e, porque não, com nova tecnologia aplicada diretamente nas diferentes áreas que compõe um espetáculo como: iluminação, sonoplastia, figurino, cenário.

Porém, aquilo que realmente está por trás de tudo que envolve uma peça permanece igual no decorrer dos séculos. O ponto de partida é o mesmo: o homem. Assim, o encontro homem a homem determina a sobrevivência do teatro que utiliza como matéria prima a matéria viva, presente no momento em que ouve-se o terceiro sinal.

Enquanto a família X está em casa se arrumando para ir ao teatro, o ator está no teatro se concentrando, se aquecendo e se preparando para receber esta família. No momento em que a família X chega ao teatro e compra os ingressos ela está disposta a embarcar num outro universo e ver, ouvir, se emocionar e se transformar. O ator, concentrado, revê todos os detalhes e quando a luz se acende, abre-se o pano, ele espera ser visto, compreendido e assim, emocionar e transformar com sua arte aquela família X que se dispôs a estar ali, atentamente, participando dessa comunhão.

Talvez tudo isso pareça muito romântico mas, enquanto o teatro for capaz de educar, transformar e emocionar, através do riso, do choro, da raiva, da inveja, ele sobreviverá. Sempre haverá alguém disposto a embarcar num mundo imaginário e experimentar novas sensações por instantes que parecem uma eternidade. Aqui temos a essência do fazer teatral e de um bom espetáculo: bons atores e um espectador que esteja disposto a participar dessa troca de sentidos e emoções. Quando concretiza-se esse jogo, a mágica está feita. Todos passam, sem perceber, a respirar e pulsar num mesmo ritmo.

Espero estar certa e espero que nenhuma máquina seja capaz de substituir a presença de um corpo em cena. Não há momento mais gratificante, do que aquele em que o ator em cena percebe o olhar atento do público, convencido de sua história. Ao fim, o aplauso que as vezes provoca uma verdadeira catarse e lava a alma do ator e do público.

Realmente o teatro é mágico ainda hoje, como sempre foi, desde o dia em que Téspis representou pela primeira vez. Tomara que assim continue por toda a história da humanidade. Tomara que apesar das dificuldades sempre haja um ator disposto a representar, sempre haja uma família X disposta a assistir e que sempre haja uma boa história para contar. Com a presença física, real. E como diziam os gregos:Evoé!

Rennata Airoldi
São Paulo, 3/4/2002

 

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