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Quarta-feira, 3/4/2002
Nazismo na era do videogame
Daniela Sandler

É mais um videogame com lutas, perseguições, ataques e mortes. A tarefa do jogador é caçar e destruir o maior número possível de inimigos. Os ditos inimigos são representados com feições grotescas, monstruosas ou ridículas. Destruí-los é salvar o mundo, no videogame. Você, leitor, há de estar bocejando: afinal, a maior parte dos videogames corresponde mais ou menos a essa descrição. Não há novidade, não há choque. Esse tipo de brinquedo não é apenas comum: parece inofensivo e banal.

Pois bem, esse novo videogame, que ganhou espaço no noticiário norte-americano, chama-se “Limpeza Étnica”. O herói é homem e branco. Os inimigos são negros, judeus e hispânicos. Se você ainda acha que isso não passa de brincadeira de mau-gosto, pense duas vezes. Os autores e fabricantes do jogo têm propósitos mais sérios do que divertir os impulsos racistas de seus consumidores.

De sua sede em Virgínia, EUA, a autodenominada “Aliança Nacional”, associação de extremíssima direita, decidiu criar e produzir o jogo como parte de seu arsenal de propaganda e doutrinação. Livros, discursos e reuniões políticas, ao que parece, não são suficientes para atingir o público-alvo da Aliança: homens brancos de 15 a 30 anos. O presidente da Aliança, William Pierce, um senhor polido e calmo, cabelos brancos e fala pausada, solta barbaridades ao repórter em voz mansa, como se ignorasse a conotação explosiva e chocante de suas idéias.

Partido Nazista Norte-Americano

Essas idéias – uma mistura de conservadorismo político, racismo e violência, Ku Klux Klan e nazismo – sugerem que a eliminação de todos os não-brancos, não-americanos e não-protestantes (entre outras não-qualificações) irá curar os Estados Unidos de seus problemas e restituir a segurança nacional, além de dar o merecido tratamento a grupos considerados vis e prejudiciais (os negros, judeus e hispânicos). Pierce foi oficial do Partido Nazista Norte-Americano (ANP) – sim, isso existe, mas o nome do partido foi depois trocado para Partido Nacional-Socialista do Povo Branco. Pierce deixou o ANP para integrar a Aliança Nacional.

Note-se que o jogo, que começou a ser vendido em janeiro, ainda nem foi adaptado ao cenário pós-World Trade Center – a Aliança Nacional vem fermentando e espalhando suas idéias independentemente da recente onda xenofóbica atiçada pelo ataque terrorista de setembro passado (que, se não justifica o racismo, pelo menos ajuda a entender sua intensificação).

“É preciso difundir nossas idéias”, diz o presidente da associação. O jogo é um meio eficaz e rápido – uma espécie de “aprenda brincando” pervertido. Goebbels, o ministro de informação e propaganda de Hitler, certamente aprovaria. O problema não é, simplesmente, que o videogame possa acabar inspirando algum usuário mais destrambelhado a praticar em alvos concretos suas proezas virtuais. O problema é que esse é justamente o propósito do videogame.

Uma coisa é falar sobre os efeitos inadvertidos de filmes, jogos ou tevê (a “banalização da violência”, como dizem alguns). Outra coisa é um produto concebido como meio para provocar esses efeitos. Esse videogame não é inofensivo. Esse videogame não é simplesmente ultrajante. Esse videogame é uma arma. E está sendo vendido, legalmente, sem censura ou impedimento, do mesmo modo que a Aliança Nacional publica e propaga suas idéias impunemente.

Neutralidade perigosa

O repórter da rede ABC pergunta: “Mas o senhor não está preocupado com a possibilidade de esse jogo acabar machucando alguém de verdade?” O presidente da Aliança responde que “isso é irrelevante. O importante é passar a mensagem.” A alguns passos dali, diante de seu computador, está o responsável pelo desenvolvimento do jogo propriamente dito, um jovem de cabeça raspada e visual agressivo. De novo, o sorriso e a fala calma fazem um contraponto sinistro. Ele explica suas decisões de criação: “O jogo é passado em Nova York. Por quê? Ué, judeus, Nova York... saca?” É bom lembrar que a multiplicidade social de Nova York, seu cosmopolitanismo, são vistos com desconfiança e reprovação por boa parte dos norte-americanos, que vivem em cidades e grupos sociais muito diferentes da metrópole.

Peter Jennings, o âncora do telejornal que noticiou o jogo há duas semanas, não escondeu sua crítica, definindo o videogame como mais um dos absurdos de uma era em que deveríamos combater a violência e a intolerância, e não difundi-las. Mas o repórter se manteve perigosamente neutro. Manteve o tom de voz imparcial, não fez comentários e – principalmente – não fez perguntas críticas e delicadas com as quais poderia ter confrontado os representantes da Aliança Nacional.

Mas a neutralidade é perigosa e comprometedora, neste país em que a liberdade de expressão é confundida com vale-tudo. A democracia acaba privilegiando iniciativas repressivas, discriminatórias e autoritárias – e potencialmente virulentas. Para a maior parte do público, o comentário de Jennings pode ter sido sutil ou rápido demais. No atual clima de pânico social, em que o preconceito latente dos norte-americanos vem ganhando exposição e sendo recebido, no mínimo, com complacência, é preciso mais que isso.

É preciso ser tão ou mais didático que os autores do videogame, é preciso repetir claramente as críticas, e é preciso definir “liberdade” em função da sociedade e da convivência coletiva – a velha história do “minha liberdade termina quando a sua começa”. Liberdade de expressão não pode ser anarquia. Um jogo chamado “Limpeza Étnica”, explicitamente divulgado como propaganda ideológica, não pode ter permissão legal de venda. Nós – o público, e o repórter – não podemos fazer de conta que aquele velhinho simpático é apenas alguém com idéias próprias e direito de dizê-las seriamente no horário nobre da tevê.

Para quem se interessa...

O site da ADL (Anti-Defamation League, ou Liga Antidifamação), que luta contra o racismo, o extremismo político e o anti-semitismo, mantém várias páginas com informações sobre a Aliança Nacional, com o objetivo de alertar o público para esses – e outros – perigos.

Daniela Sandler
Rochester, 3/4/2002

 

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