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Sexta-feira, 5/4/2002
O Exército de Pedro
Alexandre Soares Silva

Quem só gosta de música clássica, e de nenhum outro tipo de música, ama tanto o complexo que não consegue amar o simples. É como alguém que não consegue mais gostar de maçã, só de apfelstrudel; não consegue mais gostar de leite, só de camembert; não consegue mais nem gostar de ar - só de oxigênio aromatizado e comprimido.

Digo mais: que quem não gosta de nenhum outro tipo de música não pode gostar de música clássica. Porque o complexo é feito do simples. É como se a música clássica fosse feita de centenas de músicas populares entrelaçadas umas nas outras. Se você não gosta de música popular, de música simples- do melhor da música simples- não pode gostar do gigantesco entrelaçamento que a torna música erudita. Afinal, se você não gosta de lã, não vai gostar de um casaco de lã, por mais intrincado que o casaco seja.

A mesma coisa é não conseguir gostar mais de nada que é infantil, porque o sujeito é, ooooh, tão adulto....Numa versão estreita do que é ser adulto: a mente envolvida com abortos e fundos de investimento e câncer. E um terreno num cemitério sem estátuas.

Mas houve um tempo em que juramos lealdade ao Exército de Pedro (a.k.a. "Pedrinho do Sítio do Picapau-Amarelo"). Eu, pelo menos, jurei. Não sei se vocês se lembram, mas em vários livros do Sítio do Picapau Amarelo um adulto diz para o Pedrinho algo do tipo "Mas você já é um homenzinho!", à guisa de cumprimento- o que o faz tremer de horror. Quando lia isso, eu também calculava com horror quanto tempo ainda tinha de infância- mais três, quatro anos? Cinco, com boa vontade? Isso me preocupava um bocado, como uma estrela de cinema se olhando no espelho à procura de rugas (dois anos é o início do fim, como disse J.M. Barrie no início de Peter Pan). Até o momento em que solenemente declarei para mim mesmo que isso não importava - que o melhor de mim, o mais importante de mim, não passaria para o exército inimigo jamais.

Meu ponto é que há muita coisa infantil que, ao contrário do que diz São Paulo, não deveríamos ter orgulho de abandonar. Algumas coisas infantis, vá lá, até devemos abandonar - chupeta, mamadeira, fralda. Por mais excêntrica que uma pessoa seja, acho que não pega bem um médico, por exemplo, atender seus pacientes com uma chupeta na boca. Mas outras - quase todas as outras coisas infantis - deveríamos reter. O entusiasmo por doces, por exemplo. O prazer com revistas em quadrinhos e ilustrações de livros. A atenção com que uma criança olha uma ilustração de livro, ou o menor dos desenhos numa história em quadrinhos, é quase mística. É assim que a arte pede para ser olhada. Uma criança é mais e melhor esteta que um crítico de arte ou um colecionador - talvez mais até do que um pintor. Grande parte da infelicidade de um Pollock, por exemplo, é que ele nunca parou para olhar a própria pintura. Estava ocupado demais sendo adulto e bebendo e fazendo cenas.

A história dos últimos dois séculos - desde 1866, quando Alice no País das Maravilhas foi publicado - é a história de como mudamos nossa posição em relação à infância. É a história de como nos tornamos subitamente sábios e de como nos tornamos subitamente estúpidos. E realmente nos tornamos subitamente sábios em 1866. Todos agora queriam ser moleques, como Alice e Peter Pan; todos queriam vagabundear no campo e à beira dos rios, como os personagens de O Vento nos Salgueiros (Kenneth Grahame, 1908). Essa foi a grande fase da literatura infantil- e, não por acaso, foi chamada de Época de Ouro (Golden Age). Até que veio a Primeira Guerra Mundial; pior ainda, até que acabou a Primeira Guerra Mundial. E todos queriam ser incrivelmente desiludidos e amarguinhos. E adultos (e adultescos). Tivemos setenta anos disso- setenta anos de intelectuais politizados, bêbados, e horrorosamente adultos. Hemingway e Fitzgerald queriam tanto ser adultos, que para sempre nos parecerão adolescentes (que é a idade em que queremos muito ser adultos). E pior que eles foi a geração que de fato foi adulta: homens secos nas margens do Sena e do Hudson e nos bares de Ipanema: Camus e Malraux e Sartre e Simone (de Beauvoir e Signoret) e Antonio (Callado e Candido), e praticamente todo homem do século vinte que já vestiu um terno e fumou um cigarro e entrou para o PC.

Disso fomos salvos por Spielberg, na década de 80. Para o ódio dos adultescos de todo o mundo, ele nos infantilizou de novo; e pouco importa que logo depois tenha traído a causa e passado a fazer filmes tão esforçadamente adultos. Hoje vivemos em um mundo em que alguém de cinqüenta anos pode ler os livros de Harry Potter em paz- ou de Beatrix Potter, ou de C.S.Lewis, ou de Hugh Lofting. Para o horror de muitos e minha eterna satisfação.

Lembre-se do seu juramento: lealdade ao exército de Pedro. Não é pedir muito.

Leslie A. Fiedler

Há quem reclame. Há quem ache que o mundo nunca foi suficientemente cinza e adulto. Em 1960, o crítico americano Leslie A. Fiedler escreveu um livro imensamente interessante e inteligente defendendo exatamente isso- Love and Death in the American Novel. A tese de Fiedler é que os americanos são mais infantis do que os franceses ou os russos; e é por isso que fogem do assunto Relacionamento (a religião dos adultos), e preferem escrever sobre o lago Walden ou o Rio Mississipi ou a caça às baleias, onde podem brincar como moleques longe da presença civilizadora e opressora da mulher.

Devemos, portanto, à imaturidade de Melville ele ter escrito Moby Dick, ao invés de simples versões de Madame Bovary ou de Anna Karênin ou de O Primo Basílio. Devemos isso ao bom-senso profundamente infantil de Melville, de saber que um cachalote branco gigantesco é um assunto muito melhor para um livro do que um sujeito que fica andando por Paris à procura de dinheiro para um aborto (A Idade da Razão, do überadulto Sartre).

Meu Deus, se ser adulto é só poder se interessar por Relacionamentos, concorde comigo que o tempo é mais agradável na Terra do Nunca, no Sítio do Picapau Amarelo, em Oz, no Bosque de Cem Acres, e em Narnia. Deixemos a Idade da Razão aos homens chatos e secos de todos os tempos- ocupados, como eles estão, com o lúmpen e as varizes.

Citação

Wherever they go and whatever happens to them on the way, in that enchanted place on the top of the forest, a little boy and his Bear will always be playing.- A.A.Milne, Winnie-the-Pooh.
("Caminhem eles para onde for e aconteça o que acontecer, naquele lugar encantado no alto da Floresta um menino e seu Urso sempre estarão brincando."- as famosas linhas finais de Winnie Puff, na tradução de Monica Stahel- Ed. Martins Fontes, 1994)

Ogden Nash

Cem anos atrás nasceu o poeta leggero novaiorquino Ogden Nash (1902-1971), que escreveu, entre outros poemas:

Samson Agonistes

I test my bath before I sit,
And I'm always moved to wonderment
That what chills the finger not a bit
Is so frigid upon the fundament.


Se você não gosta disto, se não tem tempo a perder com essas bobagens, me desculpe, mas você é muito besta. Um brinde à memória de Ogden Nash (que também escreveu Cause woman is a wow/ Or should I say a wowess?), onde quer que ele esteja. Saúde.

Alexandre Soares Silva
São Paulo, 5/4/2002

 

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