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Quinta-feira, 4/4/2002
Passado e Liberdade
Evandro Ferreira

Quando da criação do tempo, a figura mais pitoresca presente no recinto deve ter sido um cigano como o de "Cem Anos de Solidão", com seus livros misteriosos, que nunca se empoeiravam e que jaziam sempre no mesmo lugar, mesmo após sua morte. Além disso, o evento deve ter-se realizado em uma casa de poucos móveis, simples, povoada de folhas esvoaçantes e habitada por uma moça de vestido folgado, sempre a pular e correr.

Sempre que sinto o tempo passar como um calafrio em minha espinha tenho para mim que o melhor remédio é abrir um livro de García Marquez. O efeito é o de um mergulho em águas límpidas e calmas. E na volta o mergulhador tem aquela sensação de missão cumprida, que faz o tempo parar e esvazia a mente por algumas horas, apagando-se as preocupações, os aborrecimentos e as angústias, como em uma tarde de um domingo de férias, que não tem a segunda-feira de trabalho como "dia seguinte".

Em tempos como o que vivemos, de absoluta pobreza espiritual, abrir as páginas de "O amor nos tempos do cólera" foi, para mim, uma experiência de um tempo que não vivi e que, mesmo assim, posso dizer que não volta mais. Pode parecer estranho falar sobre um livro que não se terminou de ler, mas o fato é que logo no início me surpreendi com um recurso literário que vale por dezenas desses livros bonitinhos da Companhia das Letras, que enchem as megalivrarias com "novos talentos" que já desisti de tentar ler, tantas foram as vezes em que não passei da décima página. O recurso consiste apenas em passear livremente pelos tempos da memória.

A palavra memória pode ser entendida, em García Marquez, como uma recordação do presente, do passado e do futuro do personagem. Essa recordação, efetuada pelo narrador desde um lugar muito distante do futuro, proporciona ao leitor uma sensação inigualável da vastidão do tempo. É assim que a narração tem início com o médico Juvenal Urbino entrando na casa de seu amigo Jeremiah, que jazia morto no chão. Havia se suicidado. Narram-se os fatos decorridos dentro do recinto, descrevem-se o ambiente e as sensações do personagem central.

Os acontecimentos se narram no pretérito-perfeito ("foi", "pegou", "pensou", etc), mas entremeados das lembranças distantes do passado de Juvenal, de coisas que ele havia feito muito antes em sua vida. A partir de um certo momento então é que se desloca mais fortemente o tempo, quando o narrador descreve algo que ainda não havia acontecido com Juvenal até aquele momento, mas descreve como passado: "Não teria podido viver sem averiguar mais tarde por que aquele soldado indômito, acostumado a se bater até a última gota de sangue, havia deixado por terminar a guerra final de sua vida".

Dessa forma, García Marquez nos dá uma pista de seu segredo: estamos lendo o relato de uma vida, ou melhor, de várias vidas que ocorreram em um tempo muito distante. Ainda assim, existe um passado, um presente e um futuro para aqueles personagens. E eles vivem uma angústia e uma melancolia do tempo. A mesma melancolia que temos ao ler suas histórias, mas por motivos diferentes. Eles se lembram de tempos que se foram e que não voltam mais. Nós nos comovemos com isso, pois sabemos que também eles já se foram; e outros vieram depois deles, os quais também se lembraram, melancolicamente, de tempos passados. As gerações se sobrepõem umas às outras vertiginosamente e, ao mesmo tempo, vagarosamente. E os lugares se mantém fixos, imutáveis, guardiões dos tempos passados, tempos que não deveriam, aparentemente, ser guardados. A casa de "Cem Anos de Solidão" (seu mais famoso livro) é sempre a mesma. Os filhos nascem, e os sobrinhos, netos e bisnetos. E a casa é a mesma, os móveis e as fotos, sempre no mesmo lugar. E existe um personagem que nunca sai da casa, Amaranta, a moça que encanta a todos e que depois se desilude da vida. Amaranta, assim como os móveis e as fotos e a casa, está sempre lá, mas cada vez mais decadente.

É certo que há nas obras de García Marquez uma série de outras características e recursos geniais. Esse passeio pelo tempo da mémoria, entretanto, salta aos olhos. Mas por que isso ocorre? Por que nos comovemos e nos alegramos tanto com a passagem do tempo para os outros, ou melhor, por que sentimos tanta necessidade de acompanhar as alegrias e tristezas das vidas desses personagens, tão distantes no tempo que até seu futuro já é passado?

A resposta está dentro de cada um. Mas o seu núcleo pode ser resumido assim: queremos ver um sentido no conjunto dos acontecimentos que se desenrolam ao longo do tempo. Queremos uní-los em uma linha única e comprida, tão comprida quanto pode ser a memória da humanidade. Queremos ver as gerações se sucederem e precisamos explicar - a partir do que ocorreu antes - aquilo que veio depois. E García Marquez nos dá isso, pois nos dá uma única coisa necessária a isso e que não tínhamos: a linha do tempo, com todos os seus personagens alegres e tristes, desiludidos ou sonhadores, aventureiros ou apáticos.

Muitos podem dizer que apenas estabelecer essa causalidade entre antes e depois é muito pouco. E que isso não dá sentido à vida de ninguém. Esses se surpreenderiam se parassem um pouco para perceber de quantas formas diferentes é possível se estabeler um nexo entre o antes e o depois. Arrisco-me até a dizer que a humanidade gasta quase toda sua energia nessa tarefa. Os filósofos passam suas vidas criando seus sistemas a partir dos anteriores e depois refutando e comparando teorias. Os economistas estudam os erros dos seus antecessores para propor soluções mais sensatas aos problemas da produção e distribuição de riqueza. Os engenheiros criam estruturas que sejam mais confiáveis que as outrora produzidas.

Todos dependem do que veio antes, mesmo que o neguem - e a negação do passado não raro ocorre, sobretudo onde menos devia, isto é, na filosofia. É nesse momento que surgem as aberrações teóricas como o pós-modernismo e o desconstrutivismo, filhotes semi-bastardos do pragmatismo, doutrina que procura encontrar as relações de causalidade e ligação entre as coisas, apenas porque podem servir a determinados fins práticos, como se a estrutura da realidade tivesse algum valor para o homem quando desligada de um sentido espiritual maior e superior. Assim, os pseudo-filósofos admiram a realidade em seu eterno devir e encontram nesse devir a maior das belezas. Depois procuram nele relações de eficiência e tentam estabelecer o que pode ser feito para tornar o sistema da realidade mais estável. Mas a coisa não dura muito tempo, pois o devir é entediante e a estabilidade não decorre do planejamento e controle do tédio. Então se cansam e precisam "variar", respirar novos ares. É quando têm a brilhante idéia de "desconstruir" a realidade. E passam a querer nos convencer de que esta não passa de uma criação do homem e, como tal, pode ser desmontada. Como resultado vêm as revoluções e os movimentos de contra-cultura, tão crentes na necessidade de ser livre quanto ignorantes do verdadeiro sentido da palavra liberdade.

Esse pequeno panorama, eu o tracei para introduzir um problema que é a chave da falta de sentido que o homem contemporâneo sofre em sua vida. Ele se desligou de seu passado, perdeu muito de sua capacidade de olhar para trás e sentir-se melancólico ou nostálgico. Aquele que realmente quer se ligar ao seu passado não tem medo de olhá-lo de frente. O homem contemporâneo, ao contrário, foge do seu passado, tem uma necessidade enorme de apagá-lo, "libertar-se" dele. E não vê que essa libertação é, na verdade, uma prisão, pois ele não consegue se livrar da necessidade de esquecer o passado.

Quantas pessoas hoje conseguem ouvir uma música triste ou assistir um filme dramático e sair "purificadas" pela experiência da tristeza? Quando Aristóteles falava da catarse - a purificação do expectador que aprendia com o sofrimento e alegria dos personagens - por certo não pensava que ela fosse uma experiência dolorosa, que deveria como tal ser feita a contragosto. De fato, muitas pessoas, ao longo da história, se regozijaram com a beleza das coisas tristes, sentindo uma espécie de dor confortante. Mas hoje é comum ouvirmos alguém dizer após uma sessão: "que filme triste, se eu soubesse não tinha nem assistido". Ou então, quando colocamos uma música: "põe alguma coisa mais animada aí". As pessoas estão sempre peocupadas em estar animadas, em esquecer a tristeza. E isso não acontece por culpa do neoliberalismo ou da lógica da competição, como gostam de dizer os "freis Bettos" que povoam os cadernos de cultura dos jornais brasileiros. É, ao contrário (e à semelhança do capitalismo), uma criação cultural. O imediatismo e o culto do presente e da eficiência, bem como o medo da tristeza e grande parte das patologias psicológicas da modernidade são fruto de um fundo cultural muito bem determinado e que está longe de ser o modo-de-produção. A vontade de libertação, em seu sentido materialista, provocou todos esses problemas.

E, do uso dessa palavra, é preciso que se tirem as devidas conclusões, ou melhor, é necessário que fique bem claro que a idéia de libertação, tal como é usada hoje em nossos meios intelectuais, está carregada de materialismo histórico e se resume à redução grosseira da liberdade humana ao nível dos direitos materiais. Sob o pretexto de acabar com a pobreza, os partidários da libertação (teológica, filosófica, política, ou seja la de que tipo) apoiam toda sorte de absurdidades e adaptam suas teorias ao sentimento de ódio e revolta como meio de alcançar a liberdade. Só assim é possível que se entenda como alguém pode criar uma "ética da indignação", como vi outro dia estampado na capa de um livro.

O homem contemporâneo - imerso nesse turvo caldo teórico criado por aqueles que deveriam ser guias ao invés de "empurradores" de teorias - não consegue se comunicar com seu passado. Ele está acuado pelos outdoors que o mandam "pensar positivo" e pelos programas de TV que o transformam em um autômato, receptor de idéias prontas de todos os tipos, nas quais não se pode deixar de incluir as de "cidadania", de "politicamente-correto", de "tolerância" e mais uma infinidade de palavras gastas e já esvaziadas de sentido, tantos são seus significados possíveis.

O mais exato exemplo desse homem contemporâneo se encontra na classe média. Preocupado em seguir todos os conselhos ouvidos na TV Cultura e no canal Futura, o "cidadão" semi-intelectualizado de classe média se torna um tipo insuportável, que não gosta do FHC - mas pelos motivos errados - e que se cala diante da progressiva desmoralização da propriedade privada, como se estivesse disposto a ceder seu apartamento a um grupo de falsos "sem-teto", "sem-terra" ou sem qualquer outra coisa, ou simplesmete a uma dessas maravilhosas ONGs que pipocam pelas ruas de nossas cidades, a inventar novos "excluídos".

Enquanto isso, os mais pobres nem têm tempo de assistir ao Jornal Nacional, de tanto que trabalham para pagar os custos sociais do funcionarismo público e do "Estado dinossauro", termo tão feliz, criado por Meira Penna. E o mais triste é que nem se pode lamentar o fato de eles não assistirem o noticiário, pois, se o fizessem, talvez estivessem mais procupados em invadir propriedades do que em ser felizes.

No meio de tudo isso, García Marquez é uma lição de vida. Uma lição distante, como distantes são os acontecimentos do passado, mas verdadeira. Nada é mais necessário a quem quer ser livre do que distanciar-se do burburinho pseudo-intelectual que, desde os tempos dos sofistas na Grécia antiga, se opõe à busca da verdade e da felicidade.

Evandro Ferreira
Belo Horizonte, 4/4/2002

 

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