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Quarta-feira, 10/4/2002
Nas garras do Iluminismo fácil
Daniela Sandler

De novo, guerra. De novo, a guerra vira uma historinha simplista e maniqueísta, sem memória, sem análise profunda, sem coragem, encaixando seus personagens no esquema raso e estereotipado do "vilão" e da "vítima", do certo e do errado. A imprensa, a ONU, a Igreja, a opinião pública, os abaixo-assinados eletrônicos, os militantes políticos de esquerda, os militantes pacifistas supostamente apolíticos, os democratas moderados, os acadêmicos, os camponeses, e agora até mesmo os neo-liberais: todos são coniventes com a versão unânime e dominante dos fatos, produzida e reproduzida no vídeo e nas conversas de bar.

Todo mundo ­- o âncora e veterano repórter de guerra Peter Jennings, o secretário-geral da ONU, o presidente dos Estados Unidos, e o bando de universitários engajados ao meu redor ­- todo mundo crê possuir o saber claro e certeiro sobre o atual esquema de forças no Oriente Médio. É óbvio. A tevê mostra os tanques esmigalhando carros em ruas empoeiradas; os corpos feridos, estendidos ou mortos dos palestinos; suas mulheres chorando sob os véus, mãos ao céu; os helicópteros lançando bombas à noite, fogo e fumaça. A tevê mostra os soldados israelenses, bruscos, grossos, mandando jornalistas embora e brandindo rifles. George W. Bush dá bronca em Ariel Sharon. Tony Blair apóia. Colin Powell desembarca em Israel para ver se o castigo será obedecido. O papa condena a ofensiva israelense. Kofi Annan pede que Israel pare imediamente suas agressões.

Raciocínio pueril

Todo mundo crê saber com certeza o que se deve fazer, e como se deve julgar: há uma equação, seus lados são mutuamente exclusivos; criticar um dos elementos é aliar-se ao outro, o oponente. O que ninguém parece perceber é que, enquanto o conflito for tratado como uma oposição dualista, não importa qual dos lados se escolha para defender: a relação de poder, a guerra, a opressão irão se perpetuar. É preciso desfazer a equação por completo. É preciso abandonar o raciocínio pueril do "quem começou".

Para evitar conclusões precipitadas, declaro aqui que sou contra a política agressiva, opressora e violenta de Israel, não apenas nesta guerra (nestes tempos de reducionismo inflamado, é preciso ser didática). Mas condenar a política israelense não significa necessariamente defender os palestinos, como tem acontecido nas representações da imprensa e nas figurações da opinião pública. Essa postura ignora dois aspectos fundamentais. Em primeiro lugar, ignora os antecedentes do conflito, os atos pelos quais os palestinos são responsáveis, e a agenda política palestina de modo geral. Em segundo lugar, ignora o complexo jogo de forças no Oriente Médio, em que há muitos outros países ­ e, dentro de cada país, várias organizações ­ cujos interesses são múltiplos, contraditórios e cambiantes.

Sofás de ponta-cabeça

A vitimização dos palestinos na mídia ocidental, em especial aqui nos Estados Unidos, pode ser considerada novidade. A tevê tem bombardeado imagens da destruição de cidades palestinas, incluindo detalhes nos interiores das casas revistadas pelos israelenses -­ sofás de ponta-cabeça, armários revirados ­- acompanhados pela narração que "explica" a mãe chorando, as crianças e idosos famintos, os combatentes mortos, a proibição da passagem de ambulâncias.

Em contraposição, os ataques suicidas que motivaram a intensificação da ofensiva israelense, quando noticiados nas últimas semanas, ganharam imagens descarnadas e impessoais: um salão de jantar em ruínas, uma equipe de pronto-socorro mostrada de relance. Desnecessário dizer que esses ataques quase não são mencionados agora. Após sua extensa reportagem sobre a destruição nos territórios palestinos, a rede ABC reserva aos civis israelenses apenas uma frase, a última: "Por aqui, os israelenses não estão preocupados com a reprovação internacional. Desde que a ofensiva começou, os ataques suicidas à população pararam, e, para eles, é isso o que importa".

O repórter disse a frase contra o pano-de-fundo de uma pacífica Jerusalém à noite, com entonação de reprovação. É como se a segurança interna não fosse um direito legítimo dos israelenses, como se houvesse algo de torpe no alívio dos cidadãos. As mesmas autoridades que pedem o recuo de Israel não fizeram nenhum apelo semelhante aos terroristas palestinos. O subtexto parece dizer que tanques e helicópteros são "errados", mas ataques suicidas, snipers e armadilhas (como a que matou treze israelenses ontem, em Jenin) são válidos.

Barril de pólvora e cegueira

O caso é que o alarme internacional em torno do conflito, motivado por seu acirramento e pelo envolvimento de países vizinhos (o Egito, por exemplo, cortou relações diplomáticas com Israel), aparece como inocente "defesa da paz", entendida como valor abstrato, universal, quase religioso. Por que a comunidade internacional não se manifestou antes, quando o barril de pólvora ainda não tinha explodido? Esse período de hostilidades entre israelenses e palestinos já dura dezoito meses, mas, ao que parece, suas manifestações não eram violentas o bastante para ganhar manchetes e sessões da ONU.

Aí está o erro -­ a cegueira para as provocações mútuas e continuadas, a opressão e o terror rotineiros: a presença dos colonos israelenses (muitos dos quais são imigrantes norte-americanos) em territórios palestinos; os ataques suicidas em ônibus, bares e mercados de Israel. É fácil condenar a violência berrante dos tanques, mas eles não são a causa do problema. Teria sido muito mais útil pressionar Israel a retirar seus assentamentos (em vez de expandi-los), que violam os termos do acordo de paz e buscam ocupar forçadamente terras palestinas com a tática do fato consumado. Teria sido mais útil, e mais fácil.

Assim como teria sido mais útil cobrar de Iasser Arafat mais rigor e eficiência no combate ao terrorismo palestino, que ele condena publicamente, mas se diz impotente para controlar. Se ele está mentindo, se é de fato conivente ou apenas incompetente, é outra questão ­ independentemente disso, a "comunidade internacional" teria o direito de exigir, como condição para o processo de paz, que a Autoridade Palestina se responsabilizasse pela conduta terrorista de seus membros. Mas isso implicaria, por coerência, exigir o mesmo de estados estabelecidos ­ como o Líbano, que abriga o grupo terrorista Hezbollah.

Mas, antes da deflagração da guerra, as notícias de atos violentos, narradas com frieza e distanciamento, expressavam essa espécie de indiferença em relação ao Oriente Médio. Por um lado, é como se a sucessão de ataques tivesse acostumado a opinião pública à violência da região, que, banalizada, virou notícia velha, não-notícia. Mas essa indiferença é fabricada, conveniente, confortável. Ninguém quer mexer no vespeiro -­ é melhor deixar que eles se matem, contanto que o suprimento de petróleo mundial seja garantido. E, apesar das mortes e tensão, enquanto formalmente podia se falar em "paz", na prática garantia-se a estabilidade produtiva.

Comparação espúria

A demonização israelense também é problemática por assumir que todos os israelenses concordam com a política de seu governo. Como observou o jornal The Chicago Tribune, a imprensa israelense tem sido mais crítica do que a imprensa internacional em relação à ofensiva militar liderada por Sharon. Há um movimento no exército israelense de "desertores conscientes", que se recusam a servir por discordar da política opressiva de seu país. Grupos de israelenses organizaram passeatas de oposição -­ mas as câmeras se concentraram nos soldados que reprimiram os manifestantes, mais uma vez reforçando sua imagem malévola, em vez de dar atenção aos opositores.

Justiça seja feita, essa demonização é recente nos Estados Unidos, o maior aliado político e militar de Israel (oficialmente e extra-oficialmente). Mas essa visão, sempre acompanhada da representação dos palestinos como povo oprimido (sem vítima não há vilão), não é novidade em círculos intelectuais ou politizados, judeus e não-judeus, pacifistas ou radicais. É freqüente a comparação da situação dos palestinos à dos judeus durante o Nazismo, aguçada certamente pela ironia histórica que fez das vítimas opressores, implicitamente comparando Israel à Alemanha nazista.

Essa idéia não é de hoje, como o demonstra um evento realizado em Berlim, em 1983, que debateu os cinqüenta anos da tomada de poder da Alemanha pelos nazistas. O evento, antinazista, contou com sobreviventes de campos de concentração e heróis da resistência. A guitarrista de um trio de música folclórica que apresentava canções em iídiche dedicou a última canção, escrita em um gueto polonês em 1942, como uma "prece para o povo palestino, e para a liberdade em geral". A dedicatória ignora solenemente o fato de que alguns dos grupos mais poderosos entre os palestinos, como a organização terrorista Hamas, não estão interessados em "liberdade em geral", muito menos em convivência pacífica com os israelenses (daí também a dificuldade de Iasser Arafat em controlar o terrorismo palestino).

O episódio foi relatado pela filósofa norte-americana Susan Neiman em sua autobiografia Slow Fire. Neiman qualificou a dedicatória como "Iluminismo fácil". Fácil, para consumo de massas, não-problemático, indolor ­ e de rápida aplicação. Pois só mesmo a ansiedade por respostas imediatas e definidas leva à comparação de dois grupos historicamente tão distintos quanto palestinos no fim do século 20 e judeus durante o Holocausto. É preciso ignorar todas as especificidades de tempo, geografia, política, sociedade, cultura, religião, interesses internacionais e nacionais, além da organização e motivações de cada um desses grupos, para usá-los como variáveis intercambiáveis de uma mesma equação. Que, para começo de conversa, nem é a mesma equação.

Pacifismo desinteressado?

Nesse redemoinho de emoção, e pouca reflexão, poucos parecem ligar o interesse intenso, apressado e unânime da "comunidade internacional" ao fato de que o suprimento de petróleo mundial está em jogo e já está sendo usado como arma política por países do Oriente Médio. Saddam Husseim cortou a exportação de petróleo e fez o preço do barril subir ­ segundo analistas, menos pelo impacto do Iraque (que produz apenas 4% do petróleo mundial) do que pelo medo de que os demais países produtores de petróleo sigam seu exemplo. Em outras palavras, o interesse "pacifista" na região é também econômico.

Além disso, para negociar a sua ofensiva no Afeganistão ­- uma ação militar classificada vagamente como "guerra contra o terrorismo" e movida, na prática, contra um país que, como entidade nacional, não fez agressões -­, os Estados Unidos tiveram de pisar sobre ovos nos últimos seis meses, tentando equilibrar o espinhoso jogo de forças da região e conquistar simpatias em todos os lados. No ano passado, quando as hostilidades entre Israel e os palestinos aumentaram, os Estados Unidos viram-se obrigados pela primeira vez a condenar seu país protegido, para não desagradar o muçulmano Paquistão, base estratégica de suas operações.

O próprio Bush não parece se dar conta de sua contradição, condenando Israel por responder a atos terroristas em seu território nacional. Afinal, foi esse mesmo Bush quem repetiu, após o ataque ao World Trade Center, que iria "caçar e punir os responsáveis" pelo ato de terror nos Estados Unidos.

Prospecção histórica

Para que haja alguma chance de paz no futuro da região, é preciso que se enfrentem com coragem as suas complicações passadas e presentes. É preciso reconhecer que boa parte dos palestinos, assim como vários países ao redor, são contrários à presença de Israel na região ­ o que vem sendo demonstrado, ao longo dos anos, em inúmeros ataques terroristas até mesmo quando a política israelense se abre para negociações de paz (foi o que ocorreu, aliás, neste último "Massacre de Pessach").

É preciso reconhecer que muitos israelenses também são hostis ao processo de paz, como os colonos assentados nos territórios palestinos e aquele lamentável personagem, Yigal Amir, que assassinou Yitzhak Rabin em 1995, quando a paz na região não parecia tão distante. É necessário condenar os assentamentos israelenses como opressão silenciosa, mas não menos violenta; mas é necessário também condenar a proteção oficial e não-oficial de vários países a grupos terroristas.

E não se pode falar da região sem considerar seu passado recente e não-tão-recente, a desastrosa ocupação britânica, e o mito mentiroso de que a Grã-Bretanha "deu" o Estado de Israel aos judeus por sentimento de culpa diante do Holocausto. Entre 1945 e 1948, a Inglaterra ainda estava atirando em judeus que tentavam imigrar para a região clandestinamente, pois os britânicos haviam imposto um estrito limite ao número de judeus que podiam imigrar legalmente para a Palestina.

Foi graças a lutas, pressão e atos terroristas, além do apoio decisivo dos Estados Unidos, que os militantes sionistas conseguiram fundar o Estado israelense. Devemos, portanto, receber com ceticismo as palavras de Tony Blair, que, em apoio a Bush, disse que "Israel levou a sério a recomendação do presidente norte-americano". Pegando carona na manifestação do norte-americano, Blair se eximiu da tarefa de fazer seu próprio pronunciamento, e também escapou de ter de reconhecer a responsabilidade de seu próprio país sobre a bagunça da região.

Determinismo fatalista

Também não é solução entregar ao determinismo fatalista o destino do Oriente Médio, como se os seus povos estivessem fadados a se engalfinhar em lutas sem fim ­- a idéia de que há algo fundamentalmente sanguinário e autodestrutivo nas populações dessa área. Tudo o que tem sido dito a respeito do Taliban -­ que a opressão sócio-econômica da maioria da população, aliada à censura e à doutrinação religiosa e ideológica, são terreno fértil para a mentalidade suicida e beligerante de seus "soldados" -­ é válido para os demais países da área.

Esse ponto é demonstrado com clareza pelo excelente documentário Um Dia em Setembro, sobre o atentado aos atletas israelenses nas Olimpíadas de Munique, em 1972. Um dos terroristas narra sua infância em campos de refugiados palestinos -­ favelas em terra estrangeira, em que, além de miseráveis, os refugiados sofrem também a discriminação nacional em países cujas sociedades resistem à sua integração. O terrorista conta ter crescido ouvindo Israel ser apontado como culpado por sua situação miserável (explicação simplista, que ignora tanto a opressão da elite palestina como a cerrada rejeição por parte dos demais países árabes). Diante dessa miséria que parece não ter fim, explodir o próprio corpo não parece tão ruim.

Os conflitos no Oriente Médio têm motivações e origens em circunstâncias específicas, que incluem as condições materiais presentes, as relações políticas e econômicas de diversos grupos sociais e nacionais, além de uma complicada herança histórica, temperada por mitologias religiosas e culturais. Não há solução simples ou imediata. A retirada das tropas israelenses, ainda que necessária (antes que a região toda vá para o buraco), não vai resolver os conflitos locais. Como o próprio Powell observou, ainda haverá ataques suicidas, e o recuo de Israel será apenas o início da negociação do processo de paz. Nenhum dos lados é inocente, mas nenhum dos lados está condenado eternamente.

Para quem se interessa

Um Dia em Setembro (Ein Tag im September, Kevin Mcdonald, Alemanha, 1999) - Documentário
Neiman, Susan. Slow Fire -­ Jewish Notes in Berlin. Nova York: Schocken Books, 1992

Daniela Sandler
Rochester, 10/4/2002

 

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