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Quinta-feira, 11/4/2002
Prazeres
Adriana Baggio

A língua francesa tem duas palavras muito parecidas para descrever dois comportamentos bem diferentes em relação à comida. Gourmand é aquela pessoa que gosta de comer pelo prazer de comer, é o guloso; gourmet é o apreciador, aquele que sabe distinguir a boa cozinha, os bons vinhos. Eu adoraria ser uma gourmet, mas minha relação com a comida é muito mais empírica do que teórica. Portanto, assumo minha posição na classe dos gourmands. Aproveitando as referências ao processo de digestão do nosso site, vou liberar uma fantasia antiga: brincar de guia gastronômica. Vocês vão ficar conhecendo os melhores pratos deste país, segundo um critério muito simples e egoísta: os que eu provei e que gostei. É, literalmente, indicação boca-a-boca. Dessa seleção não participam pratos muito sofisticados, ou com aquela combinação de ingredientes que fazem a alegria das colunas de gastronomia. Vou falar de comidas bem comuns, mas deliciosas. Pelo menos para o meu gosto.

Por uma questão de organização, vou listar as dicas por ordem geográfica. Queria começar por uma deliciosa anchova grelhada em um dos muitos restaurantes à beira-mar de Bombinhas, em Santa Catarina. Não lembro o nome do lugar. Só consigo recordar que era sábado, estava nublado, caía uma garoa fina. Aquela anchova foi perfeita para o almoço tardio. Casquinha tostada, carne branca, nem seca, nem gordurosa, com um sabor defumado que fazia gemer. Maravilhosa. Deixando de lado os prazeres mais delicados e caindo na orgia, subo até a Vila da Glória, início do litoral de Santa Catarina. É um lugar paradisíaco, calmo, isolado. O acesso é difícil pela estrada de terra, ainda mais quando chove. A Vila da Glória fica às margens da baía de Guaratuba, que banha o Paraná e Santa Catarina. Na travessia da Vila até São Francisco do Sul, de ferry-boat, dá para ver os golfinhos, se eles estiverem de bom-humor. Enquanto a gente espera o ferry, a melhor coisa que tem é se esbaldar no rodízio de frutos do mar do restaurante do Zinho. Prazeres do paladar, prazeres do olhar, tudo ao mesmo tempo. É o céu.

Subimos até Curitiba. Preciso ser parcimoniosa, o que é difícil para uma gourmande. Poderia citar desde a esfiha aberta de uma biboca na Cruz Machado, lugarzinho nada nobre, até a massa com tinta de lula do Bice. Mas para ficar na média, vou começar com o Taco el Pancho. O Taco é um lugar dos mais simpáticos e agradáveis. Sobrevive há uns cinco ou seis anos ao poder destruidor do modismo curitibano. Inaugura bar, fecha bar, e ele permanece. É perfeito para ir com qualquer companhia, em qualquer clima. É bom para ir com um bando de amigas e tomar margueritas bem coloridas e ficar tontinha e falar besteira. É bom para ir em turma de amigos e tomar muitas cervejas e falar coisas inteligentes. É bom para fazer happy hour legal com o pessoal chato do trabalho. É bom para fazer esquenta antes de sair. É bom para ir quando você não tem aonde ir. É bom para ir em casal, porque quanto menos você percebe o barulho em volta mais você terá certeza se aquela é ou não sua alma gêmea. Mas o Taco é bom também porque tem uma comida deliciosa! Uma das minhas definições de prazer é tirinhas de mignon na chapa com cebolas (nem tudo é perfeito...), um potinho com cheddar, outro com molho barbecue e uma cestinha de baguete cortado em fatias. Atende pelo nome de Carnitas Santa Fé, chega chiando na mesa e de repente você vira o centro das atenções. Para provocar ainda um último suspiro, sorvete de baunilha com calda de chocolate e café. Não tem como não ser feliz depois disso.

Uma das lendas gastronômicas de Curitiba é o mineiro de botas. Não torça o nariz para a mistura de banana, goiabada, ovo, queijo, tudo flambado no conhaque. O aspecto é horrível, mas o sabor é fantástico. Você pode comer um delicioso mineiro de botas no Tortuga, depois de um jantar bem civilizado. Mas se a noite for de barbarismo, vá ao Bar Palácio, o reduto boêmio da cidade que socorre o povo da madrugada. Ou então, se você está só e já perdeu as esperanças, encare um caldinho de feijão recendendo a alho do Sucatão, no Largo da Ordem, centro histórico da cidade. Cura ressaca e qualquer sentimento de rejeição.

De Curitiba e do frio vou pular para o calor da Praia de Meaípe, no litoral do Espírito Santo, a 7 quilômetros de Guarapari. Uma das melhores coisas que já experimentei veio do Cantinho do Curuca. Seo Curuca colocou várias plaquinhas de louvor a Deus no restaurante, e parece que tem adiantado. Depois da moqueca correta, gostosa, vem a revelação: uma torta de coco maravilhosa, divina, sensacional. Para usar as palavras de um chèr ami, diria que ela "parece gélida por fora, mas é tenra e quente por dentro". Não que tenha acabado de sair do forno. É que qualquer um sente um calor suave e macio correr pelo corpo depois de provar esse doce.

Pulando para Salvador, o que tenho para falar é tão comum que nem tem graça. Mas como o critério é gosto pessoal, não posso deixar de lado o singelo acarajé. Se for no Pelourinho, melhor ainda. Se estiver escuro, e você não puder enxergar os ingredientes, nem a cor do óleo, e nem a honestidade do branco do vestido da baiana, a experiência será quase completa. Para fruir o prazer em toda a sua extensão, não tenha timidez com a pimenta. Os nefrologistas que me perdoem, mas o ardido é fundamental. O prazer que ela provoca é masoquista. Não tenha medo de ir longe demais, vale a pena. É uma mistura de felicidade e dor. A picada na língua, o fogo na garganta, a onda quente que corre pelas entranhas, tudo isso faz parte da experiência. Quando não estiver mais agüentando, tome um gole de cerveja gelada. Você vai lacrimejar, mas não vai achar ruim.

E finalmente, chegamos em João Pessoa. Apesar de ser uma cidade litorânea, a culinária típica vem do sertão. Muitas casas e restaurantes oferecem as iguarias da terra seca. Para um grande almoço, ou jantar, sugiro uma costela de carneiro no Tábua de Carne. Como acompanhamento, macaxeira frita, purê de queijo, arroz branco e feijão verde. Corte um pedaço da macaxeira, molhe no purê de queijo e coma. Na verdade, você não vai parar mais. É muito, mas muito bom. Para ser perfeito, você deve ter pedido de entrada uma fatia de queijo coalho na chapa com orégano. O queijo é branco, meio borrachudo, tostado por fora e macio por dentro. Uma delícia.

O café da manhã na capital paraibana tem que ser no Mangai. Para quem gosta da cozinha regional, é um prato cheio, literalmente. Prefiro ignorar os pratos exóticos, feitos de diversas partes de diversos animais, disponíveis no buffet desde as primeiras horas da manhã, para me concentrar no que realmente importa: pão de macaxeira. Citando mais uma vez mon chèr ami, é comovente ver as fatias de pão molhadas na manteiga de garrafa e tostando na chapa. Cada gomo de um pão dá três fatias, cada pão tem cinco gomos, e cada mordida tem muito mais calorias, colesterol e gordura que seria prudente seu médico ficar sabendo. Portanto, esqueça esses detalhes e aproveite, de preferência com café preto.

Paladares mais delicados também encontram o prazer em João Pessoa. Passeando pela orla de Tambaú, você pode optar pelo Lion, que serve deliciosos crepes. Um dos grandes momentos dessa minha vida de prazeres culinários aconteceu em uma noite relativamente fria. Minha pele, já meio crestada pelo calor dessa terra, consegue sentir arrepios provocados pelo vento que vem do mar. Considerando esse contexto, devo dizer que foi delicioso provar o crepe de camarão, catupiry e uva Itália sentada em uma mesa ao lado do forno à lenha. Um prazer diferente, delicado e aconchegante. E por falar em prazeres delicados e diferentes, não dá para deixar de mencionar o espaguete com molho de camarão e limão do Sagarana. Como uma filha meio sem graça de uma família de beldades, o espaguete passa meio despercebido entre as tantas delícias do cardápio, mas é um erro subestimá-lo. A mistura do adocicado do camarão com o ácido do limão, junto ao creme do molho, oferece um sabor criativo, inesperado, que conquista na hora. Deixo os outros pratos para os turistas.

Apesar de não estarem disponíveis em nenhum restaurante do Brasil, não posso deixa de citar as próximas dicas no meu guia gastronômico. Na casa da minha mãe tem uma polenta com molho de camarão que é tão divina quanto simples. A polenta é macia, branquinha, nem mole, nem dura. O molho é feito com aqueles camarões pequenininhos e saborosos. O contraste de cor e sabor encantam. Mas toda essa poesia acaba quando a comida chega na mesa. Ver o povo avançando para o prato não é lá muito romântico, mas deixa a cozinheira satisfeita.

Já minha nona, mãe da minha mãe, tinha uma receita que me traz as melhores lembranças: bolo de chocolate com noz moscada. Simples, muito simples, mas nunca vi ninguém fazer desse jeito. Hoje ela faz bolos de chocolate com noz moscada no céu, e imagino que os anjinhos fiquem se esbaldando. Enquanto isso, tento acertar a receita por aqui. Só não fico mais frustrada porque também tenho minha especialidade: fondue de queijo dentro do pão italiano. Imagine: um pão sem o miolo, só com a casca, recheado de queijo, lacrado e esquecido no forno por uns 40 minutos. Depois de assado, é só abrir a tampinha, pegar pedaços do miolo, molhar no queijo e... deixo para cada um imaginar os barulhos que vai fazer. Prazer é um negócio muito íntimo, e já fomos longe demais nesse texto...

Adriana Baggio
Curitiba, 11/4/2002

 

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