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Sexta-feira, 12/4/2002
Na varanda
Alexandre Soares Silva

Quatro da manhã
São quatro horas da manhã - todos estão dormindo. Por que raios é que o mundo me parece tão melhor quando todos estão dormindo? Saio na varanda e vejo que até as ruas estão mais bonitas. Desertas, iluminadas aqui e ali. De debaixo das copas das árvores vem uma iluminação que parece ser a gás. São Paulo parece subitamente misteriosa - como se Sherlock Holmes pudesse viver aqui - ou Fu Manchu. Nessa cidade dá pra viver. Não parece nem mesmo feia. Não, na verdade parece romântica - luzes de várias cores (vermelhas no alto dos edifícios), frio, silêncio, e a ausência absoluta da vulgaridade das pessoas.

Mas nasce o sol, e a vulgaridade das pessoas acorda com elas. Quase se pode ouvir. Quase não - é possível. Aqui na varanda, consigo mesmo ouvir os pensamentos vulgares dos meus vizinhos. Os primeiros carros na rua. E o sol à medida que vai subindo vai revelando a feiúra da cidade- como é grotesca! O que antes parecia bonito simplesmente porque estava escuro se revela, agora, como concreto esfarelado e placas comerciais amassadas. Agora é o mistério que foi dormir, e a idéia de Fu Manchu andando nessas ruas é realmente ridícula. Acho que estou obcecado pelo Fu Manchu. Preciso da idéia de um vilão misterioso pra poder sobreviver.

Duas da tarde
Dia é urgência. Saio de casa correndo como se o banco fosse fechar em três minutos. No banco, estaciono rápido, entro quase correndo, e espero a porta automática se abrir com impaciência- amaldiçoando o sujeito na minha frente, um garoto alto de ancas largas e movimentos lentíssimos, que tira devagar as chaves do bolso e olha ressabiado para o vidro fumê onde o guarda deve estar. Quem mandou o moleque se vestir de marginal? Está usando colete no calor, e um troço de lã preta na cabeça, que faz com que ele pareça todos os torcedores do Corinthians ao mesmo tempo. O olhar dele para o retângulo de vidro escuro é o olhar que uma vaca daria se fosse capaz de se sentir ressentida.

Subo as escadas correndo, fico na fila angustiado. O banco só vai fechar em duas horas. Mas e se der um problema, sei lá, e eu tiver que passar em casa e voltar? Fico olhando o relógio. Os caixas. Acho sempre que o primeiro da fila está distraído, que não vê na hora que o caixa foi liberado, e que - pior ainda - anda devagar demais até o caixa, para mostrar que é blasé. Enquanto ele anda devagar, dou chutes mentais nele. Nas pernas, nas costas. Ele cai.

Estou com pressa de voltar para a minha varanda.

Três da tarde
Peguei o hábito de ler em voz alta, andando devagar, descalço, na minha varanda. Esta é outra varanda, a da sala- grande como o tombadilho do H.M.S. Victory, e dando para um bosque. Quase só se vê copas de árvores. Ao longe dá pra ver a cidade, e noto, não pela primeira vez, que duas mil coisas bem feias ficam bonitas quando vistas de longe. São Paulo, vista do Rio (se isso fosse possível) deve ser quase Florença. O que me faz pensar que Florença, vista de Veneza, digamos, deve parecer Asgard.

Mas voltemos, voltemos. Caminhe descalço comigo no chão de ardósia da minha varanda. O sol não bate aqui e o chão está um pouco frio. Logo ali está a minha cocker spaniel Lolita, deitada com o focinho descansando na muretinha de pedra, olhando o bosque. Ao lado dela está uma bola de tênis. Ela está esperando pacientemente que eu pare de ler e brinque com ela. Ainda não.

Estou lendo Patrick OŽBrian.

OŽBrian foi um dos gênios do século vinte; mas pouca gente percebe isso porque ele escrevia de modo antiquado. Ele escrevia como Jane Austen. Foi tão civilizado quanto Jane Austen, mas sem as agulhas de crochê na mão. Foi, digamos assim, a reencarnação do irmão naval de Jane Austen- uma Jane Austen macha.

OŽBrian era um cavalheiro e dava grande valor à privacidade. Morava pobremente na França, com a mulher. Escreveu biografias de Joseph Banks (o grande explorador e naturalista dos séculos XVIII e XIX) e de Picasso. Quando morreu, jornalistas descobriram uma série de detalhes sórdidos sobre a sua vida. Como, por exemplo, que ele era na verdade um inglês, e não um irlandês como sempre disse que era. Mas não vale a pena falar dessas coisas. Vamos pensar nele como ele queria que pensássemos nele: como um irlandês.

OŽBrian ficou mais famoso por uma série de romances passados durante as guerras napoleônicas. Os personagens principais são dois amigos, um capitão da Marinha Real chamado Jack Aubrey e um médico chamado Stephen Maturin. Para mim eles são bem mais reais do que, por exemplo, o síndico do meu prédio. Já vi o síndico do meu prédio, mas não sei o que ele pensa, e para falar a verdade tenho algumas dúvidas que ele pense. Acho que é uma espécie de casca. Mas sei muito bem como o Capitão Aubrey e o Dr. Maturin pensam, sentem, falam, gesticulam. Aliás, enquanto leio o livro em voz alta, interpreto os personagens, faço as vozes, e gesticulo como eles. Tenho medo que lá pelo vigésimo livro eles morram. Tenho muito medo.

O inglês de OŽBrian é difícil- tanto pela linguagem de época quanto pelos termos náuticos. Mas há traduções feitas em Portugal, e quem ama OŽBrian acaba comprando guias náuticos só para poder distinguir cada mastro e cada vela. Vale a pena.

O romance em questão é o primeiro da série, e se chama Master and Commander. O acaso fez com que o Capitão Aubrey (que não é capitão ainda) e o Dr. Maturin tenham se sentado lado a lado num concerto amador em Port Mahon. Jack Aubrey acompanha a música dando tapinhas na perna, e de vez em quando canta junto, baixinho. O Dr. Maturin olha feio pra ver se ele pára. Jack pára, mas dali a pouco se distrai e canta de novo. O Dr. Maturin perde a paciência e diz a ele que, se vai cantar, que ao menos o faça no ritmo. Mas o imperdoável é que, antes de dizer isso, dá uma cotovelada em Jack. Jack fica vermelho e se cala. Quando o concerto acaba, se apresenta e diz onde está hospedado (o que é uma forma sutil, bem sutil, de desafiar para um duelo). O Dr. Maturin diz que vai estar lá na manhã seguinte.

Mas, naquela noite, Jack é promovido a capitão, depois de uma espera de anos. Seu ânimo, é claro, muda. Na manhã seguinte, pede desculpas ao Dr. Maturin, que aceita encantado, e os dois vão tomar o café-da-manhã da maneira mais civilizada possível. Esse é o início da amizade que vai durar vinte e tantos livros. OŽBrian é muito bom em mostrar gente civilizada agindo. Até os marinheiros são civilizados. Os oficiais discutem Ossian, Samuel Johnson, Homero. Stephen toca violoncelo, Jack toca violino. De noite, quando há tempo, se trancam na cabine do capitão e tocam um dueto. Quando não querem que os marinheiros os entendam, falam latim.

A essa altura o vento desgrenhou o meu cabelo, e estou parecendo um vagabundo que vive em um arbusto. Mesmo assim faço a voz e a cara azeda de um almirante que não gosta de Jack Aubrey. Só Deus sabe o que os vizinhos pensam de mim. Talvez o vizinho canadense me veja de vez em quando zangado, gesticulando, e tire a conclusão óbvia de que eu sou maluco.

Mas que se dane. Damn your impudence, Sir! The raving, mutinous dog! Só os ingleses podem ser um pouquinho excêntricos?

Alexandre Soares Silva
São Paulo, 12/4/2002

 

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