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Quarta-feira, 17/4/2002
A falha fatal
Daniela Sandler

Faz dois meses que Slobodan Milosevic, o ex-ditador sérvio, está em julgamento no Tribunal Internacional de Haia, por crimes cometidos nas guerras contra a Bósnia, a Croácia e Kosovo. Depois de praticamente uma década durante a qual os Bálcãs se esfacelaram em batalhas, cidades queimadas, limpeza étnica, disputas entre sérvios, croatas, bósnios, kosovares, entre cristãos e muçulmanos, Slobo, que mantinha sobre seu país não apenas poder autoritário mas também apelo carismático (em especial depois que as bombas da Otan começaram a cair sobre Belgrado, a capital iugoslava), está sendo submetido aos procedimentos civilizados, anódinos e burocráticos da corte internacional.

O que surpreende não é a admirável performance de Milosevic, que, advogando em causa própria, tem feito jus a seus talentos de oratória e impressionado pela eficiência de sua defesa. O que causa espanto é a possibilidade de que ele escape da condenação pela maioria das barbaridades do exército sérvio, eximido de responsabilidade por não haver provas de seu conhecimento ou envolvimento direto.

Ninguém, é claro, nega a existência das tais barbaridades – massacre de populações civis, estupros, destruição baseada em nacionalismo e diferenças de etnia e religião. O que se procura provar, não sem dificuldade, é se Milosevic estava ciente de que as forças armadas sob seu comando (como governante sérvio) estavam agindo dessa maneira, e se ele ordenou ou coordenou, de alguma forma, essas ações.

Chinelos

Além disso, a autoria de muitas das ações também é motivo de disputa. Anteontem, o ex-ditador negou a responsabilidade sérvia sobre o massacre de 45 albaneses étnicos em Racak, em 1999. Esse massacre foi considerado o fator crucial na decisão da Otan de intervir no conflito de Kosovo. Milosevic sustentou que o ato teria sido encenado pelo Exército de Liberação de Kosovo, que teria “montado a cena” usando corpos de guerrilheiros mortos em combate para dar a aparência de ataque à população civil, culpando o governo sérvio e precipitando a ofensiva da Otan contra a Iugoslávia.

Milosevic questionou o relato da testemunha, o general britânico da reserva Karel Drewienkiewicz, que havia chegado a Racak horas depois do massacre. Drewienkiewicz disse não ter dúvidas de que se tratava de um massacre, e não de um combate: os corpos, jogados numa vala comum, eram de homens de meia-idade, calçando chinelos e com marcas de tiros na testa – ou seja, não havia sinais de luta, resistência ou guerrilha. Mas, ainda assim, o general não presenciou o massacre. E, além disso, é a sua palavra contra a do acusado.

Desde o início do julgamento, estabeleceu-se a dificuldade de apresentar evidências materiais desse envolvimento – documentos oficiais, atas, declarações, ordens escritas, comunicações entre o ex-ditador e seus subordinados, comandantes diretos das ações militares. Em seu début, em meados de fevereiro, Milosevic não apenas deixou isso claro, como driblou a promotoria e desmoralizou uma das testemunhas de acusação, que caiu em contradição e imprecisões em relação a suas declarações.

Talvez, nesse caso, o erro – causado diretamente pela falta de preparo da testemunha – tenha sido motivado pelo excesso de confiança: os horrores das guerras nos Bálcãs tão óbvios a ponto de sugerir que a causa já estivesse ganha de antemão, com esforço mínimo, como se o Tribunal fosse apenas uma formalidade. Mas, se fosse assim, o longo processo – e todo o esforço, energia e recursos nele empregados – perderiam o sentido. Para que a corte aja com justiça, não pode haver concessões, e o réu é inocente até que se prove o contrário.

Provar o óbvio?

Mas a retórica da justiça, como sempre, aliás, corre o risco de abrir brechas para a sua própria subversão, por meio de seus próprios recursos. Até que ponto é injusto acusar uma autoridade nacional de cumplicidade nos crimes de exércitos e milícias financiados pelo governo de seu país apenas com base em testemunhos? Até que ponto Milosevic pode ser vítima de acusações infundadas, e até que ponto ele pode ser beneficiário da falha fatal inerente ao próprio sistema de justiça?

Para ilustrar essas questões, pode-se recordar um outro caso similar, em que o discurso formal e as premissas do sistema de justiça abriram a possibilidade de negar, formalmente, as atrocidades da Segunda Guerra e a responsabilidade de Adolf Hitler sobre elas. Essa aberração foi motivada pelas ações e publicações de David Irving, um dos principais historiadores revisionistas, ou seja, que negam as dimensões e as implicações do Holocausto e dos terrores nazistas.

Irving não nega que tenha havido campos de concentração. Sua preocupação principal é eximir Hitler da responsabilidade sobre eles. Secundariamente, ele também busca diminuir a intensidade dos horrores cometidos nesses campos, assim como nos guetos e nas cidades e aldeias européias. Quando Irving começou a escrever seus livros, ele ainda admitia a existência e a função das câmaras de gás e dos crematórios, mas negava que Hitler tivesse ciência ou envolvimento direto sobre eles. Com o passar dos anos, revisou não apenas a história, como também seus próprios livros, e passou a negar também que essas câmaras tivessem funcionado ou mesmo existido, assim como massacres e agressões realizados fora dos campos.

Acusado por uma historiadora de distorcer intencionalmente fatos históricos de seu conhecimento para melhor servir às suas posições políticas, Irving, que pode ser visto em vídeo fazendo discursos para multidões de neo-nazistas na Alemanha dos anos 90, levou a colega ao tribunal, acusando-a de perjúrio por questionar sua integridade e méritos profissionais. Não apenas torceu o sistema judiciário a seu favor, como tirou proveito do mesmo princípio que hoje serve a Milosevic: a necessidade de provas materiais do envolvimento de um governante nos atos de sua própria polícia.

De fato, e apesar da aparente obviedade, não é fácil estabelecer formalmente a responsabilidade, ciência ou autoridade de Hitler ou de outros membros de seu governo sobre o massacre de judeus, ciganos, dissidentes políticos, comunistas, homossexuais e deficientes físicos ou mentais, entre outros “inimigos do Reich”. Há uma abundância de documentos, atas, declarações e ordens de comando por escrito, por certo – os nazistas, afinal, ficaram famosos pela obsessão tecnocrática e pelo registro detalhado e exaustivo de ordens e ações. Mas esses documentos são marcados por uma linguagem fria, formal e vaga, que no mais das vezes elude, disfarça ou desmente a sua virulência concreta.

A linguagem sutil do terror

Os eufemismos compunham um código usado em inúmeros registros, cujo contexto e repetição sistemática não deixam dúvidas quanto a seu significado. Plantas arquitetônicas de Auschwitz definem as câmaras de gás como “câmaras mortuárias enterradas”. Um dos exemplos mais arrepiantes: um formulário interno informando sobre a necessidade de um carregamento de Zyklon B, o gás usado nas câmaras. O documento não usa as palavras “gás” ou “Zyklon B”. Em seu lugar, solicita “material para o relocamento de judeus.”

Adolf Eichmann admitiu, anos depois, que, durante a conferência de Wansee, em 1942, quando foi discutida a “solução final” para a “questão judaica”, uma de suas preocupações ao redigir as atas e registros oficiais era justamente manter uma linguagem neutra, técnica e formal, com eufemismos e omissões, que não comprometesse ou indicasse o significado real das decisões e ações do Reich.

Durante o julgamento, os opositores de Irving tiveram de suar para combater a ausência de “provas formais” do envolvimento ou conhecimento de Hitler – o mesmo desafio do julgamento de Milosevic. Um dos argumentos usados foi o fato de que o extermínio e destruição foram realizados em grande escala, disseminados por toda a área do “império” alemão, financiados por recursos públicos e apoiados pelo governo. Teria sido impossível que Hitler, na qualidade de “líder supremo” alemão – ou seja, não apenas governante, como também detentor de poderes autoritários e centralizadores – não tivesse conhecimento de uma operação de tal magnitude em seus domínios.

A conclusão é que, no mínimo, Hitler sabia; e, se sabia e não se opôs, consentia. Esse raciocínio foi decisivo na oposição às declarações de Irving. Mas é um raciocínio amansado, feito de asserções eufemísticas; para preservar a segurança de suas afirmações, descreve o envolvimento de Hitler no Holocausto como passivo – consentimento ou ciência. É claro que os oponentes de Irving sabem, e declaram, que o papel de Hitler foi ativo, decisivo e intenso. Ele catalisou os sentimentos racistas, nacionalistas e de extrema direita de boa parte da população alemã da época e deu a esses sentimentos a manifestação concreta, extrema e megalomaníaca do Terceiro Reich.

No fim, Irving perdeu o processo. Mas seus adversários tiveram de lutar contra as “tecnicalidades” da linguagem legal e a dificuldade de apresentar provas materiais – pois, no final da guerra, quando da liberação dos campos de concentração, os aliados destruíram muitas de suas instalações, inclusive câmaras de gás. Os historiadores têm de enfrentar a dissolução do testemunho material e o silêncio das ruínas sobre seu propósito original. A aberração – depois de tanto horror, ter de provar que o horror existiu – é similar ao exame de corpo de delito em estupros, para o qual mulheres violentadas têm de preservar a prova do crime em seu corpo.

Paralelo inquietante

Guardadas as devidas proporções (afinal, Milosevic não é Hitler, ainda que seu julgamento tenha sido definido como o mais importante desde a Segunda Guerra), o processo movido por Irving e a discussão sobre a responsabilidade de Hitler fornecem um paralelo inquietante aos eventos atuais. Daí que as palavras do historiador David Cesarani, em comentário sobre o processo de Irving, também façam sentido no caso do ex-ditador sérvio:

Só mesmo o mais amador dos pesquisadores acreditaria que, num regime político como o Terceiro Reich, cada ato teria sido autorizado por uma ordem escrita. Esse era um regime criminoso, que tinha consciência de sua participação em atos criminosos. Ele manipulava a lei de maneira deliberada e enganosa. E há inúmeras ordens dadas por Hitler, das quais nós temos conhecimento, que nunca foram colocadas no papel. Os oficiais nazistas diziam ser a vontade do Fuhrer que determinada coisa acontecesse e todo mundo sabia exatamente o que aquilo significava: que era uma ordem vinda de cima, e que não era para ser registrada. Deveria ser preservado aquilo que hoje em dia nós chamados de possibilidade de negação completa.

Que os promotores no Tribunal de Haia tenham de provar o óbvio – e que estejam suando mais do que Milosevic para isso, apesar de contar aparentemente com o apoio de quase o mundo inteiro – é de arrepiar, ainda que, na linguagem técnica e formal da justiça, faça sentido. Ainda que seja lógico, de acordo com os princípios do direito; ainda que esteja em consonância com suas premissas e obedeça a seus esquemas. Suponho que faça completo sentido para os especialistas e profissionais do ramo.

Mas, para mim – cidadã comum, leiga (e supostamente beneficiária da justiça) –, assim como para milhões de outros cidadãos comuns, é a justiça que não faz sentido. Não que ele não mereça o julgamento – o processo, aliás, é catártico e necessário ao reconhecimento (formal) de seus crimes, além de oferecer a possibilidade de punição devida. O que ele não merece é a lógica espantosa da “prova do óbvio”, a possibilidade de ser inocentado de uma, várias ou (em tese) todas as acusações pela falta de evidência formal. Talvez alguns crimes sejam graves demais para as premissas da justiça. Talvez a nossa lógica e a nossa ética não possam dar conta de atos de horror extremo. Onde quer que esteja a falha, ao distorcer de tal maneira o sistema que supostamente deve agir em favor de valor humanísticos definidos e apoiados pela maior parte da sociedade, os crimes de Milosevic (assim como as falácias de Irving e os eufemismos de Eichmann) fazem piada dessa instituição. Repetem a violência original, desta vez na encarnação amansada do tribunal e da mídia. Tragédia na primeira vez, farsa na segunda?...

Daniela Sandler
Rochester, 17/4/2002

 

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