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Sexta-feira, 19/4/2002
Antologia dos Poetas Feios
Alexandre Soares Silva

Tenho nas minhas mãos um livrinho publicado pela editora sulina Plantageneta, chamado Antologia dos Poetas Feios. O livrinho em si é bonito. Vermelho, do tamanho de um passaporte. Mas os poetas são hediondos.

É a feiúra que causa a poesia? Isso explicaria a obra de José Sarney, por exemplo - mas não a de Byron. Ou é a poesia que causa a feiúra? Numa página famosa da novela Tônio Kroeger, Thomas Mann escreveu que o pensamento faz mal à cútis. A poesia também? Será que Byron, se tivesse vivido mais tempo, teria sido deformado pelos próprios decassílabos? Estranha possibilidade. Mas felizmente o organizador do livro, Prof.François Maltie, não perde tempo com sutilezas teóricas.

O primeiro poeta da antologia é um certo Aithirne, que viveu na Irlanda nos primeiros séculos depois de Cristo. Aithirne era um satírico. Sua poesia era tão venenosa que, dizem, causava bolhas e feridas no rosto das vítimas. O primeiro poema do livro é um Glam-Dichenn (poema satírico) em que Aithirne pede que o pênis de um inimigo caia desfiladeiro abaixo, o que, afinal, "será uma benção, liberando-o de certos deveres penosos". A mulher da vítima, uma certa Ceridwen, se vingou jogando óleo fervendo no rosto do poeta - o que, se doeu na hora, pelo menos lhe garantiu a inclusão neste livro, ao lado de gente como Waly Salomão, etc.

O segundo poeta escolhido pelo organizador é o famoso sonetista veneziano do séc. XVI, Antonio Castelloni. Dizem que Castelloni era tão feio que o pintor Luca Signorelli teria se baseado no seu rosto para pintar os joelhos do Jesus Cristo no quadro "Crucificação com Madalena" (1505- atualmente na Galeria Uffizi, em Florença). Se isso é verdade, os joelhos de Jesus nesse quadro são os únicos retratos de Castelloni de que se tem notícia. Mas são dois, é claro- de frente e de perfil. (Há relatos de Signorelli mostrando o quadro para uma cortesã, apontando os joelhos de Jesus e dizendo: "Adivinha quem é". Segundo Maltie, a cortesã aproximou o rosto do quadro, sorriu e gritou: "Castelloni!".)

Castelloni !

Outra história envolvendo Castelloni, que Maltie cita na introdução, é a da sua quase audiência com o Papa Julio II. Castelloni esperava na antecâmara do Palazzo Gritti para falar com o Papa quando foi avistado pelo famoso Cardeal Andrea Farnesi. Horrorizado com a feiúra do poeta, Farnesi começou aos gritos de Bruttissimo! Bruttissimo!, e mandou expulsá-lo e jogá-lo na rua. Isso explica a origem do famoso soneto-vingança de Castelloni, presente nesta antologia (pág. 32)- aquele dedicado ao Cardeal Farnesi, e cujo primeiro verso é: "All´Orco che m´ha detto d´esser brutto...".

Maltie é razoavelmente caridoso com W.H. Auden, um grande poeta, cujo rosto foi, uma vez, famosamente descrito como parecendo um bolo de casamento esquecido na chuva. Mesmo assim ele consegue dar uma interpretação maliciosa aos versos de Auden ,"intellectual disgrace/ stares from every human face...". E, pelo fato de realmente gostar da poesia deles, também é caridoso com T.S.Eliot e Ferreira Gullar (descrito como sendo "O Mais Velho Vampiro Hindu"- pág. 82).

Nada, portanto, nos prepara para a inacreditável violência com que ele ataca os irmãos Campos e Décio Pignatari. Nenhum deles tem mais do que cinco ou seis linhas nessa antologia; mas a apresentação de cada um deles (dez páginas para Augusto de Campos, cinco para Décio Pignatari) acaba valendo o livro. Não vou estragar a surpresa do leitor. Cito só um trecho da apresentação que Maltie fez de Augusto de Campos: "Em algum ponto entre 1949 e 1979 (tenho preguiça e medo de pesquisar), o poeta Augusto de Campos se trancou no seu quarto e, durante seis dias febris, produziu o poema que viria a ser considerado universalmente como sua obra-prima: "Viva Vaia". O poema "Viva Vaia" é assim: "Viva vaia". Quer que eu repita, pra que você possa captar todas as nuances? Foi publicado no livro "Viva Vaia", Ed. Brasiliense, 1986."

Quanto a Décio Pignatari, eu teria pena dele, se não tivesse lido numa entrevista que ele acha "O Livro do Desassossego", de Bernardo Soares - heterônimo de Fernando Pessoa - chato. Isso, é claro, vindo de quem. Do autor de "beba coca babe cola caco". E depois, vamos e venhamos, quem deu aula de semiótica merece qualquer coisa.

(Antologia dos Poetas Feios, Organização, Notas e Tradução de François Maltie, Ed. Plantageneta, R$16,00)

Bernardo Soares
Bernardo Soares é o escritor mais inteligente da língua portuguesa, e ele nem mesmo existe. Ele é tão aristocrático que se recusa a existir. Isso é o máximo do chic.

Vou me matar intelectualmente
Não vendo outro recurso, deixo esta nota para avisar ao mundo que decidi me matar intelectualmente e entrar para a academia.

Vou dar aula de literatura. Deve ser agradável poder ser a caricatura de um professor distraído sem que ninguém me encha. Como, acho, Kant, que um dia chegou na universidade usando um chinelo só, e sem ter dado pela falta do outro.

(Também deve ser agradável usar aqueles remendos de couro nos cotovelos.)

Estou tentando não pensar nos autores idiotas que vou ter que ler. Aqueles. Os enviados de Belzebu, que vieram ao mundo com a missão de destruí-lo com a força infinitamente destrutiva da chatice.

Aproveito agora para avisar aos futuros empregadores que vou me envolver com todas as alunas bonitas que conseguir. Não vamos ser hipócritas: não foi sempre essa a principal motivação de todos os professores universitários de todos os tempos? E não é também, digamos assim, um dos benefícios do cargo? Ora, c´mon.

Adeus à gamine
Enquanto escrevo, nesta sexta, 19 de Abril de 2002, Deborah Secco está se internando na Clínica Santé para colocar silicone nos seios.

Sinceramente, o mal que essa Clínica Santé tem feito aos olhos, às mãos, e ao espírito do país ainda não foi analisado em nenhum livro de história - mas devia. No longo processo em que o país deixou de ser meramente pompier, como era na década de 50, para se tornar completamente declassé, na década de 90, essa Clínica fez a sua pequena parte.

Alexandre Soares Silva
São Paulo, 19/4/2002

 

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