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Quarta-feira, 24/4/2002
Iris, ou por que precisamos da tristeza
Daniela Sandler

“Que filme triste”, disse meu amigo ao sair da sessão de Iris (Reino Unido, 2001, dirigido por Richard Eyre). É a primeira coisa que as pessoas dizem quanto o título é mencionado: “ouvi dizer que é muito triste”. De fato, Iris é um dos filmes mais... tristes que vi nos últimos tempos. De deixar a platéia quieta e sorumbática. De chorar sem parar, lágrimas rolando à revelia. O que chama a atenção, além do fato de esse efeito melancólico ter virado o principal distintivo do filme, é o tom desconcertado com o qual as pessoas se referem a ele. A “tristeza” virou motivo para não ver e não gostar.

Pois eu gostei, sim. Mas o que me incomoda não é o fato de tanta gente não ter gostado – é essa lacônica aversão à tristeza. A maioria das pessoas parece partilhar uma impressão consensual de que a tristeza é um defeito auto-evidente, cuja conotação negativa dispensa explicações. Como, ao que parece, eu não participo do consenso, muito me intriga o silêncio que se segue à declaração: “é muito triste”. E daí? Por que não dizer “não gostei”, diretamente? Por que não dar mais pistas, outros motivos? Ninguém tentou ao menos me convencer de que a tristeza é razão suficiente para a reprovação.

Fragilidade

Mas o caso é que falar em tristeza é como falar em doença – como se fosse uma anomalia, contagiosa ainda por cima, algo patológico, prejudicial, evitável, talvez. A idéia da tristeza é tão perturbadora que um filme como Iris, que faz dela sua tônica dominante e recusa a redenção fácil de um final feliz, soa quase ofensivo. O problema é que a tristeza de Iris está ligada ao que o filme tem de mais verdadeiro e significativo – a vulnerabilidade de sua protagonista, e, por extensão, a nossa também; a impotência das faculdades humanas, da ciência, da força de vontade, do amor. Não admira que o filme tenha sido recebido com frieza aqui nos Estados Unidos, a terra das narrativas de heroísmo e triunfo individual.

O tema do filme é Iris Murdoch, escritora e filósofa britânica interpretada por Kate Winslet (na juventude) e por Judi Dench. A trama descreve a irreversível deterioração de sua personalidade e de seu intelecto pelo mal de Alzheimer. Centrada na fase final da vida de Iris, a história é pontuada por inúmeras cenas de sua juventude, contrastando seu talento, brilhantismo e vitalidade com a fragilidade e devastação causadas pela doença. A obra foi criticada justamente por dar tanta importância à progressão do mal, usando o vibrante passado apenas como termo de comparação, cujo efeito é destacar mais ainda a tragédia final. O roteiro quase não toca na meia-idade de Iris, nos mais de trinta anos de produtividade e contentamento como uma das mais importantes autoras de seu país, objeto do amor quase incondicional de seu marido, o escritor John Bayley.

Seus detratores acusam o filme de explorar morbidamente a doença de Iris e de não fazer jus à sua contribuição literária e intelectual. Mas o filme, ainda que não seja um curso completo e aprofundado sobre sua obra (e por que um filme deveria ser um tratado acadêmico?), declara veementemente sua admiração pela escritora, e tem o mérito adicional de dar renovada publicidade a seu nome. O desejo de ver retratado apenas o brilho de sua existência – que, no mais, está acessível a todos, em seus inúmeros livros publicados – nega o fato de que a dor, o sofrimento e o sentimento de injustiça também fazem parte dessa existência.

Sem açúcar

Talvez essa tristeza toda tenha sido mesmo a intenção do cineasta, que não imprimiu em seu filme nem mesmo a promessa de redenção. Em outras palavras, ainda que o final da vida de Iris não possa ser mudado, o diretor poderia ter escolhido representá-lo de outra maneira. Poderia ter dado ao filme um desfecho mais açucarado, dando à platéia a sensação de que a vida e o talento de Iris seriam compensação suficiente por seu sofrimento posterior; ou suavizando o efeito devastador do mal de Alzheimer. Mas o final do filme é uma lição de parcimônia e sutileza dramáticas, sem alívio estético, sem melodrama e sem monumentalidade. Não há clímax ou resolução: é como se o filme se desvanecesse, desbotasse, se distanciasse, assim como a mente e o caráter de Iris vão sumindo à medida que a doença progride.

Não se trata de fazer a apologia da tristeza. Seria tão inquietante quanto a sua negação obstinada. O elogio do sofrimento transforma o sentimento de dor em sensação e estabelece com ela uma relação de consumo sensual (o que há de fazer felizes muitos masoquistas); a tristeza vira objeto de fruição em si mesma, num círculo vicioso. A idealização da tristeza exagera suas dimensões, em vez de prestar atenção à sua presença real e específica. A tristeza, afinal, é parte da vida. Como a lei da gravidade, os acidentes, o sono, a fome. Não é questão de gostar ou não gostar, de elogiar ou reprovar, de negar ou cultivar. A questão, além de aceitar esses fatos, é lidar com eles: não só superá-los, mas tirar deles aprendizado, crescimento, maturação.

Iris é um filme incômodo porque ninguém pode se dizer livre da vulnerabilidade de sua personagem, ainda que nem todo mundo vá sofrer de Alzheimer. A obra não permite reasseguramentos do tipo “ainda bem que não sou eu” ou “é só um filme”. Aí está a sua genialidade: transcende a história de Iris e atinge uma dimensão mais profunda e universal, que fala a cada um de nós. Mostra como é pouco o nosso saber, e menor ainda o nosso poder, em relação àquilo que seria o nosso último domínio individual, a última reserva sob o nosso controle: nossa mente. Graças aos diálogos, que fazem uso da obra de Iris e dos dois livros dedicados a ela, escritos por Bayley, o filme toca em questões e inquietações com as quais todos podemos nos identificar. Além disso, as atuações de Winslet e Dench aproximam Iris do espectador, dando à personagem humanidade e verossimilhança quase tangíveis.

Estes nossos tempos eufóricos e extáticos, em que “tristeza” soa como ofensa e a promessa da felicidade vem em pílulas, em que o barulho e a fúria nos distraem cada vez mais de nós mesmos, precisam de filmes como Iris. Como lembrete, talvez; talvez como advertência. Iris é bom justamente porque é triste, justamente porque nos refresca a memória, nos faz reconhecer a tristeza e nos faz senti-la. A performance de Dench evoca vividamente como o mal de Alzheimer devora a memória e embota o sentimento. O que estamos sufocando, com essa recusa, cerrando os olhos, dizendo “é muito triste” como razão para não ver um filme? O que está nos escapando, enquanto escapamos no otimismo saturado de outras damas de celulóide? Não é Iris que tem os sentidos embotados...

Tristeza, alegria

É bom não estar sozinha na tristeza! Vejam o belo texto Bonjour, Tristesse, de minha colega de Digestivo Adriana Baggio.

Daniela Sandler
Rochester, 24/4/2002

 

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