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Sexta-feira, 3/5/2002
Superficialidade e Reducionismo
Evandro Ferreira

Um dos passatempos preferidos dos professores universitários atualmente é dar palestras sobre o que costumam chamar de "sociedade contemporânea". Para ser ainda mais específico, um dos tipos mais bem-sucedidos de conferência nas faculdades brasileiras é aquele que traz o termo "pós-modernidade" ou "pós-moderno" no nome.

Disse bem sucedido e o fiz propositadamente, com o intuito de trazer à tona a relação com a palavra "sucesso", termo tão criticado pelos mesmos indivíduos que dão essas palestras. Mas talvez a relação mais correta seja com a palavra moda. Tenho estado cada vez mais convicto de que falar sobre a "pós-modernidade" e a "sociedade contemporânea" é hoje uma moda em nossas faculdades. Até aí, nada de errado. Todos nós sabemos que a situação sócio-cultural da humanidade é um problema muito grave. O que haveria de errado em tratá-lo em conferências e palestras? Nada, se considerarmos apenas essas informações.

Mas que tal considerarmos uma terceira? Mais especificamente, que exista uma relação inversa entre a amplitude dos conhecimentos adquiridos na faculdade e o crescimento estatístico das palestras sobre os referidos temas. Aí a coisa já se complica. Qualquer um que tenha um mínimo de bom senso é capaz de admitir que, para falar da "sociedade contemporânea", principalmente para um público de estudantes, o palestrante ou professor deveria ser um profundo (no mais rigoroso sentido da palavra) conhecedor de sociologia, filosofia, psicologia, religião, para não falar de antropologia e educação. Entretanto, o que vi durante os 7 anos em que já estive frequentando faculdades foi o seguinte: o palestrante conhece apenas a sua área - que geralmente é psicologia, filosofia ou jornalismo - e detém conhecimentos superficiais sobre as demais, e muitas vezes até faz questão de dizê-lo. Então, a partir do momento que senta na cadeira até a hora dos aplausos, não para mais de expelir clichês como "individualismo contemporâneo", "a sociedade contemporânea é uma sociedade do desejo", "o consumismo e a competitividade desumanizam as pessoas", "as prateleiras dos supermercados oferecem falsas escolhas", etc. Qualquer um que der uma passeada pelo campus perguntando aos alunos pode facilmente descobrir quais são os livrinhos (sempre finos!) que estão na moda.

Por que estou dizendo tudo isso? Simplesmente porque (quase) não aguento mais ver os professores deixarem de dar o conteúdo de sua disciplina para falar que a sociedade contemporânea incita o desejo. E também já estou farto de ver aqueles cartazes que anunciam novos debates em que os participantes vão falar as mesmas coisas sobre a "pós-modernidade" e a "fragmentação da identidade". O que permanece em tudo isso é a impressão de que os intelectuais já sabem há muito tempo quais são os problemas da humanidade, e resta só colocar as soluções em prática, ação que estaria sendo impedida pela "sociedade"! Ou pelo capitalismo, para ser mais preciso.

Os parágrafos anteriores foram quase um desabafo. Mas servem de introdução ao lançamento, senão de uma verdade, ao menos de uma constatação empiricamente fundada: existe um reducionismo analítico muito perigoso praticado pelos nossos professores e intelectuais nas faculdades. E existem hoje pelo menos três mentalidades centrais nas quais podemos encaixar esse reducionismo analítico: mentalidade anti-capitalista, mentalidade psicologista, mentalidade midiática.

A mentalidade anti-capitalista, podemos encontrá-la nas discussões em sala de aula. Jamais ouvi um aluno ou professor defender as virtudes de se exercer uma atividade empreendedora. O comércio é sempre visto como um mal necessário, que deve ser controlado por ser naturalmente maligno e incitador da ambição, da busca pelo sucesso, do consumismo e do hedonismo. Os alunos menos socialistas ficam sempre calados ou terminam dizendo que não se deve ser tão "radical". Além disso, as discussões sobre ética e política giram sempre em torno de como controlar a economia. Não sobra o mínimo espaço para as teorias que defendem que os problemas econômicos vêm da própria intervenção excessiva do Estado. Tais idéias são imediatamente tachadas de neoliberais, venham de onde vierem. Mas o fato é que não chegam nem a vir, já que nem são traduzidas para a língua portuguesa. Assim, as faculdades de administração ensinam os alunos a serem empresários e as demais ensinam a odiá-los.

A mentalidade psicologista reduz tudo a conceitos psicológicos. E a análise da cultura e da sociedade vira uma espécie de psicologia da cultura, através da qual se atribui a uma abstrata "sociedade" qualidades humanas, como hedonismo, individualismo, egoísmo. Se a sociedade é hedonista, o que faria um bom sociólogo? Consideraria a afirmação como metafórica e buscaria uma melhor definição, bem como as origens desse "hedonismo". Talvez sejamos hedonistas porque certas pessoas, há algum tempo atrás, começaram a defender idéias hedonistas e a lançar livros incitando todos a fazer sexo, por exemplo. Essa é uma análise simples, parece até meio ridícula. Mas, se não admitirmos a possibilidade de que o homem produz novas idéias, onde vamos parar? Talvez paremos no marxismo. Então o surgimento do hedonismo seria um resultado das relações materiais capitalistas. E tem muita gente por aí pensando assim. Mais do que se imagina.

O que nunca vejo alguém falar é que o homem deve ser responsável pelas idéias que cria. Se um filósofo francês escreve um tratado em defesa do hedonismo, uma grande editora brasileira o publica e os meios acadêmicos o recebem com louvor e seriedade. Mas se a "sociedade" ameaça aceitar a idéia, então a intelectualidade bem-pensante já vai buscar origens psicológicas e materiais disso, como se as teorias que nascem nas faculdades não dessem origem a comportamentos na sociedade. Enfim, não basta dizer que somos hedonistas - ou qualquer outra coisa. Isso ainda não é fazer ciência.

A mentalidade midiática, por sua vez, nasce nas faculdades de comunicação e se propaga com extrema facilidade através dos próprios meios de comunicação. Ela faz com que se reduza todos os males da humanidade a um problema de "ética na comunicação". Assim, a lógica da TV, por exemplo, é culpada pela degeneração da moral e pelas desigualdades sociais. Centenas de jornalistas gastam suas vidas inteiras cobrando uma "programação de qualidade", sem perceber que as loiras bundudas e os jovens malhados são apenas uma versão moderna dos pais hippies e dos rebeldes sem causa da década de 50, ou seja, deles mesmos. A problemática toda termina na política, isto é, no consenso em torno da criação de novas leis, que vão expandir cada vez mais as mãos do Estado, nova versão do coronel protetor dos ignorantes que não sabem o que é melhor para eles.

Os reducionismos, por certo, vão bem além desses três. Mas estes já suscitam questionamentos suficientes. Um dos grandes problemas do Brasil hoje é a perda do senso de responsabilidade por parte dos professores e intelectuais. Se vão falar de temas abrangentes, precisam ter conhecimentos vastos. Como discutir sobre sociedade com um jornalista que nem leu Weber? Ou ainda, como falar de individualismo, no âmbito social e econômico, com uma pessoa que só estudou o fenômeno no plano psicológico e nem sabe quais são as formas de individualismo defendidas por intelectuais como Thoreau ou Ayn Rand? O que acontece hoje é que estas pessoas estão mais interessadas em criticar a sociedade ocidental do que em saber o que ela é e como se formou.

Um professor de psicologia certa vez me disse que um dos principais problemas da sociedade contemporânea é o individualismo. Então fiquei pensando: como conciliar essa afirmação com a massificação, que transforma as pessoas em robôs e faz com que pareçam todas iguais, vestindo-se da mesma forma e defendendo as mesmas idéias? Onde está o individualismo no meio da massa? Não haveria então um coletivismo? Mas ele nem pensou nesse problema teórico - nem ele e nem outros tantos intelectuais que já vi falarem sobre o tema. Se isso não é sinal de superficialidade analítica, então eu me chamo Elvis Presley!

Evandro Ferreira
Belo Horizonte, 3/5/2002

 

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