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Sexta-feira, 26/4/2002
O que é um livro
Alexandre Soares Silva

Enquanto se está vivendo é impossível pensar na vida. Estamos ofegantes, com os dedos tremendo- subindo ladeiras, atrasados, xingando, sendo xingados. Temos que ir lá, tirar cópia autenticada, voltar lá, pagar a taxa. A vida é uma atividade suada.

Um livro é uma pausa nisso. É isso que um livro é: uma cabana. Se você reparar, a capa é uma porta. Você abre, entra na cabana, e o barulho pára. Você senta, deixa o coração desacelerar, o suor secar.

A cabana está numa montanha. Lá de cima você vê o caminho pelo qual veio subindo, e a sua cidade de origem. Aqui de cima a cidade parece menos feia, e a atividade humana parece bem menos urgente, e talvez um pouquinho mais ridícula. Decididamente menos grotesca e mais ridícula. Você apóia os cotovelos no peitoral da janela e sorri das pessoinhas correndo.

Mas há outra janela no lado oposto da cabana. De lá você vê o caminho que vai tomar quando sair, e a sua cidade de destino. Talvez, por um truque de luz e vento, a sua cidade de destino seja a mesma de origem, mas não importa. Você corre os olhos pelos prédios e casas e faz planos. Subitamente a vida naquela cidade parece cheia de possibilidades. Parece fácil, de repente (mesmo com a sua idade, não importa) ser um pianista naquela cidade, ser um maestro, um pintor, um diplomata, um gênio. Antes, quando estava lá embaixo, parecia que só havia uma coisa, uma possibilidade, e mesmo assim não muito boa. Era aquilo, ou o desastre. Você nem confessava para si mesmo que a possibilidade (seu emprego, sua vida) era horrível; porque a única alternativa que você via era o desastre. Agora, olhando a cidade aqui de cima, é um alívio confessar para si mesmo que essa possibilidade única era horrível, horrível. Existem tantas outras. E parecem perfeitamente possíveis, perfeitamente fáceis, perfeitamente encantadoras.

Henry James, por exemplo
Eis que agora, com o barulho da reforma no andar de cima, e o jardineiro baiano gritando com a cozinheira baiana, e o telefone tocando, a vida me pegou pela camiseta e está me sacudindo com a sua histeria de sempre. Mas abri um livro de Henry James, e saí desse apartamento barulhento, e entrei na cabana no alto da montanha. E a vida, que estava me sacudindo toda desgrenhada, se acalmou, se penteou, pediu desculpas e foi tirar um cochilo na outra ponta da sala. De longe, ela fica até bonitinha, dormindo de boca aberta.

O livro é "The Ambassadors", e as primeiras páginas são, simplesmente, mal-escritas. Não há outra palavra. O pensamento de James é sempre sutil, mas aqui ele é tortuoso. É como uma visita na sua sala, agradável, sim, e muito gentil; mas ao final de cada frase dele você tem que dizer, "Desculpe, não entendi"; e ele suspira, e tenta dizer a mesma coisa de modo tão confuso quanto antes. Depois de algum tempo você desfranze o rosto e entra em sintonia com o que ele está dizendo; e passa até a amar as frases calmas, mais apropriadamente "de luxo" que uma gravata ou um vinho.

O livro é a história de um certo Strether, enviado à Europa para tirar um compatriota americano das garras da amante européia e da vida européia; mas Strether, chegando lá, se apaixona ele mesmo pela vida européia, e fica.

Mas não é do enredo, e sim do estilo de James que eu quero falar- não, nem mesmo do estilo, mas de algo mais sutil- a atmosfera. A atmosfera de James é a da vida vista de muito longe. Seus heróis não trabalham, de modo geral, e nem agem muito. Eles sentam em sofás e observam; e a vida para eles acaba sendo isso, sentar em sofás e cadeiras de vime, em Boston, Paris e Florença; observar, com uma certa admiração e um certo horror, as pessoas que realmente vivem; envelhecer e morrer. Mesmo a Europa do livro é uma espécie de miasma europeu, algo que você sente pelos poros enquanto toma uma limonada no jardim. O efeito é o de diminuir um pouquinho o barulho da vida. Ninguém se acotovela, ninguém grita. Ninguém, Santo Deus, sua. Ah, não. Trata-se da vida preservada em âmbar.

Mas é aí, nesse sofá ou nessa cadeira de vime, na cabana do alto da montanha, o único lugar em que podemos parar um pouco e respirar e pensar na vida. Porque não dá para pensar na vida enquanto se vive. Seria como pensar em música enquanto se canta. Como pensar na anatomia da locomoção, enquanto se corre.

Saindo da cabana
Mas é preciso sair da cabana, e voltar para a cidade. Nem que seja pelo simples motivo de que o livro acabou. Você suspira, sai, fecha a porta de saída (que é a contracapa) e começa de novo a descer a estrada. No meio do caminho, é bem provável, você já começa a sentir saudades da cabana. Há uns idiotas vendendo pamonha na estrada. Você torce o pé num buraco. A cidade, que antes parecia uma cidade de contos-de-fada, Ali Onde Tudo é Possível, se torna o lugar do É Mesmo, Tenho Que Pagar Uma Conta no Banco Ainda Hoje, Droga.

Mas a cabana ainda está lá. Sempre vai estar. Basta que você tenha cinco minutos.

A Teoria do Soco no Estômago
Ah, eu sei muito bem que existem defensores de uma teoria contrária: a do Livro como Choque, o Livro como Soco no Estômago. Você já deve ter visto uma dessas pessoas falando aprovadoramente de um livro, ou de um filme: "Foi um soco no estômago, cara". E dizem isso, invariavelmente, sorrindo. Fico com vontade de dar um soco de verdade no estômago deles, pra ver se eles continuam gostando. Porque na verdade eles não querem dizer que o livro foi um soco no estômago deles; querem dizer que o prazer que sentiram ao ler o livro foi o de se imaginarem dando um soco no estômago de outras pessoas, junto com o autor. ("Ah, se fulano lesse este livro!") É a teoria do livro como Soco no Estômago dos Outros. E essa teoria não contradiz em nada a teoria da cabana-no-alto-da-montanha.

Há, claro, as pessoas que dizem que os melhores livros têm um efeito perturbador no leitor. Mas aí é preciso entender o que essas pessoas querem dizer com isso. É, acho, uma espécie de Perturbação Calma - perfeitamente condizente com a vista que se tem na cabana. Não é, sem dúvida, uma Perturbação de Verdade, que é a espécie de sensação que as pessoas têm quando sentem medo de uma falência iminente, por exemplo. Não é um ai meu deus ai meu deus ai meu deus em fortissimo. Não, é uma Perturbação Pacífica - um tenho que mudar a minha vida em pianissimo. E esse é precisamente o efeito da cabana.

(Também quero deixar claro que a imagem do livro como cabana-no-alto-da-montanha só é válida para grandes autores- Tolstoi, Proust, etc. Não para os livros do Alexandre Frota, que são só uns muquifos numa favela.)

in angello cum libello


Citação
"Ler um livro é desinteressar-se a gente deste mundo comum e objetivo para viver noutro mundo. A janela iluminada noite adentro isola o leitor da realidade da rua, que é o sumidouro da vida subjetiva. Árvores ramalham. De vez em quando passam passos. Lá no alto as estrelas teimosas namoram inutilmente a janela iluminada. O homem, prisioneiro do círculo claro da lâmpada, apenas ligado a este mundo pela fatalidade vegetativa de seu corpo, está suspenso no ponto ideal de uma outra dimensão, além do tempo e do espaço. No tapete voador só há lugar para dois passageiros: leitor e autor." - Augusto Meyer (1902-1970), "À Sombra da Estante".

Alexandre Soares Silva
São Paulo, 26/4/2002

 

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