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Segunda-feira, 29/4/2002
Ganha-pão
Arcano9


22h50. Noite nublada de primavera, um cheiro de borracha queimada na minha rua. Um carro com o estofamento e a lataria quase novos foi destruído na rua de cima. Seus vidros foram quebrados, seus pneus, furados, o carro inteiro foi erguido e jogado na calçada. Esquivo-me dos pedaços de vidro e dos tijolos jogados no chão, tijolos retirados de alguma obra por aqui. Chego em casa. Jeremy Paxman na TV, apresentando o Newsnight. O entrevistado é Amr Mussa, secretário-geral da Liga Árabe. "Por que os senhores não rejeitam de um modo claro e contundente a violência dos ativistas suicidas palestinos?" Mussa responde o que se espera: nada. Fala um monte de coisas sobre direito dos palestinos resistirem. "Por que os senhores não rejeitam de um modo claro?" Pergunta de novo Paxman, corajoso profissional. De novo, mais do mesmo. Bocejo. Nada de interessante na TV. Jantar insosso. Vou dormir.

08h30. Manhã de sol, uma névoa seca. O dia promete. Alegremente preparo meu café e me sento em frente à TV para assistir alguns desenhos matutinos. Ligo a TV na BBC 1 e o Breakfast mostra uma reportagem do correspondente em Ramallah, entrando na cidade pouco antes da saída das tropas israelenses. "Eu me lembro desta rua. Era uma rua comercial, cheia de gente", diz o repórter. A rua comercial é um amontoado de poeira, pedras, lojas fechadas, tristeza, medo. "Fora dos horários permitidos pelos israelenses, ninguém sai à rua. Fica todo mundo numa sala de suas casas, uma sala de preferência sem janela para a rua. Todos têm medo de levar um tiro", fala a mulher com seu véu branco e preto cobrindo-lhe a cabeça. Depois, vamos a Jenin: um outro repórter mostra o que sobrou do campo de refugiados. "Muita gente foi morta em suas casas. Os israelenses demoliram as casas com gente dentro", diz um idoso. Aí, corta para os apresentadores do Breakfast que, muito sérios, dizem obrigado ao repórter e chamam a alegre garota do tempo, que fala de um dia radiante de luz com um sorriso nos lábios. Essa garota do tempo é muito bonita.

10h00. Chego ao trabalho. Enquanto coloco minha jaqueta no cabideiro e desafogo o colarinho desacostumado a tanto calor de manhã, uma colega berra. "Gente, estourou outra bomba em Jerusalém!". A exclamação é de excitação, pura adrenalina. Olho para a TV. A CNN mostra imagens do local. Homens ensagüentados. Paramédicos com suas tranças trabalhando desesperadamente para dar assistência aos pobres coitados. Uma menina de uns 15 anos andando com uma perna só, a outra pingando vermelho. O chefe pede para nos dividirmos, um faz um texto de emergência sobre a bomba; outro procura por fotos das agências de notícias. Outros voltam a fazer seus afazeres diários.

Israel. Palestinos. De repente me passa pela cabeça. Quem ganha com tudo isso que está acontecendo? A resposta é fácil: os jornalistas. Para os jornalistas que escrevem sobre assuntos internacionais, o Oriente Médio é o ganha-pão. É como desentupir privadas para encanadores ou fazer uma pizza muzzarela para um pizzaiolo. É também como fazer uma autópsia num morto, para um médico legista: o corpo é apenas um corpo, uma massa orgânica de células que em breve vai virar comida de vermes. Não há vida, não há calor. Só um corpo, o corpo de um morto, e sempre haverá mortos, muitos mortos, todos os dias. Eu me sinto bem. Trabalho, ganho meu dinheiro. Sento e escrevo. Obedeço ordens. Há a certeza de que sempre vai existir uma bomba em Israel ou uma troca de tiros em Erez ou assassinatos de colonos em algum assentamento para que eu possa receber meu salário honestamente. Não consigo me sentir mais triste com isso. Não mais.

12h. Me falam que a correspondente em Israel agora só pode ser contatada pelo editor. Aparentemente, ficou cansada de receber ligações de tantas pessoas de tantos programas diferentes e o editor achou melhor centralizar as chamadas. A correspondente está estressada e ficou insuportável nas últimas semanas. Um tremendo mau humor. E não consegue se controlar como conseguia antes, tentando ser imparcial. Hoje ela disse num programa de rádio ao vivo que Israel está cercando as cidades da Cisjordânia e transformando-as em grandes prisões. Não a culpo. Sei como é difícil ser imparcial, às vezes. Mas os ouvintes, não sei se sabem.

13h30. Mastigando um sanduíche de queijo mole demais, assisto uma palestra com os chefes dos chefes dos setores que cuidam mais de perto da cobertura dos últimos desdobramentos da crise no Oriente Médio. "Depois de 11 de setembro, criou-se o precedente para Israel agir. Agir com mão firme contra o terrorismo, com os fins justificando os meios." "Não, não se sabe se algum dos ministros do Gabinete Palestino já está articulando apoio para se tornar o novo chefe da Autoridade Palestina, se Arafat morrer. Eles não vão apontar um vice porque isso seria dar a Israel uma alternativa, um outro nome para negociar, e aceitar que Arafat não é mais compatível com essa atividade." "Ninguém sabe até onde isso vai, mas os países árabes não vão se mobilizar contra Israel, como ocorreu depois em 48 ou na guerra do Yom Kippur." "O que não entendo é como não se dá uma mobilização maior das comunidades árabes por aqui na Inglaterra, onde há tantos árabes. Eles poderiam fazer lobbys para forçar Tony Blair a boicotar Israel. Eles poderiam fazer manifestações."

14h. Dou uma saída, vou pegar uma encomenda em Edware Road, o centro da comunidade árabe em Londres. Um carro barulhento passa com seis pessoas a bordo. O rádio toca alto, música familiarmente árabe. Duas imensas bandeiras da Autoridade Palestina saindo pelo teto solar. Muitos pedestres param para ver o carro. Vejo pelo menos duas pararem e darem um sorriso. O resto passa andando como se nada estivesse ocorrendo.

14h40. Um deputado brasileiro nos concedeu uma entrevista de Ramallah. Ele foi para lá liderando uma comissão parlamentar para ver de perto a situação. Fala que há 10 mil famílias com brasileiros vivendo nos territórios ocupados. Depois, me falam que o carro de uma equipe da Globo foi atingido por tiros de soldados israelenses. Uma colega minha, correspondente d'O Globo, estava dentro do carro. O Brasil não está isento. O Brasil está envolvido. O Brasil pode morrer.

15h50. Na TV, Ben Brown falando de Jenin. A reportagem é longa, completa, impressionante. O objetivo é mostrar o lado humano, para contrastar com tantas notícias duras e sem vida que chegam da região. Ele visita a casa de palestinos que contam com detalhe o que é viver com medo dia e noite de que os soldados arrombem a porta e matem todo mundo. Em Jerusalém, uma entrevista igualmente interessante com uma mulher, ex-membro de um grupo pacifista, que teve parte da perna e do braço esmigalhados por um homem-bomba. Ela diz que mudou de idéia quanto ao pacifismo e que agora apóia Sharon. Eu também apoiaria, nas condições dela. A reportagem é forte, mas imparcial. As imagens são claras e nítidas. O sentimento, pungente. Mas não espero o fim da reportagem. Troco de canal, vou para a TV portuguesa e assisto o final do capítulo de hoje de uma novela brasileira.

Meu chefe pergunta se já colocamos no ar as últimas informações sobre o atentado. Sim, já colocamos, senhor. E as últimas notícias sobre a condenação internacional do massacre de palestinos ocorrido em Jenin? Sim, senhor. E sobre a visita do enviado americano, marcada para o fim de semana? Sim, sim senhor. Qual dos emissários vai desta vez? Devemos usar o "formulário A-3" de reportagens sobre tragédias no Oriente Médio?

Ben Brown, formulário A-3. Tudo igual.

16h30. Chegam notícias de Marselha. Queimaram sinagogas.

17h. O que aconteceria se os índios brasileiros decidissem se unir e tomar todas as regiões que um dia a eles pertenceram? Absurdo pensar isso, não? Seria uma revolta contra eles, eles seriam assassinados a bala. Os índios brasileiros dominavam nosso país a meros 500 anos. Foram exterminados. Os judeus viveram em Jerusalém há muito, muito mais tempo. Foram expulsos. Não foram exterminados, embora os nazistas tenham quase conseguido. Elaboraram um plano para voltar. Voltaram. Mas aquela não era mais a terra deles. De jeito nenhum! Esse é o fato. Provavelmente, qualquer lugar que escolhessem como "lar" ia dar problema - o problema sobre o que fazer com as populações locais. O que espanta é que o império britânico, que detinha a tutela da Palestina até 1948, não tenha percebido as implicações do tal retorno e tenha aprovado a causa sionista na Declaração de Balfour. Bom, deve ter percebido. Mas o lobby era forte demais.

17h15. O que é ser uma nação sem pátria? Você sabe? Eu não sei. Suponho que seja horrível. Na Segunda Guerra foi horrível para os judeus. Foi quando eles tiveram a certeza de que precisavam de uma casa, um lar definitivo. Um local onde pudessem encontrar paz. Um santuário, um local onde pudessem se proteger dos inimigos que querem a morte dos judeus.

17h30. É impressionante. Nada mais do que ouço, vejo, leio sobre o Oriente Médio me traz nada de novo. Debates sobre o Oriente Médio? Um palestino e um israelense? Nem me fale. Que tédio. Ou descamba para o irracional, ou aquela lenga-lenga diplomática em que um lado tenta ignorar o outro e usar o mediador como um juiz para as suas próprias e justas causas. No caso, o debate na rádio onde trabalho envolve uma pessoa como eu e você, que tem um emprego e trabalha, mas que vive em Jerusalém e que quase perdeu a filha num atentado. E uma mulher, uma dona de casa, que está em Ramallah e não vê a luz do sol há semanas e que não sabe para onde soldados levaram seu marido. Um programa de rádio cheio de lágrimas.

Sabe, não quero mais me comover. Não acho que meu trabalho vá fazer alguma diferença, informar às pessoas o que elas já sabem que está acontecendo. Não devo ser o único do mundo que não agüenta mais esse ganha-pão inútil.

17h45. A CNN mostra as imagens de um cinegrafista turco que, trabalhando em uma cidade nos territórios ocupados, leva um tiro na boca. Seus gritos de dor são a coisa mais pavorosa que já ouvi. A câmera cai no chão e continua filmando. Você não vê o cinegrafista, só o ouve berrando com a boca cheia de sangue e dentes em pedaços. Sinto o cheiro da pólvora e do pavor. Sinto uma leve náusea. Pego minha jaqueta.

18h00. Choveu e eu não percebi. Estava ocupado demais. Choveu e agora parece que a existência tomou um banho. Parece que tudo renasceu. As cores da primavera parecem mais intensas. O ar está mais fresco. A humidade é reconfortante. O céu está parcialmente encoberto, o sol aparece de vez em quando usando as gotas que pingam dos plátanos como prismas para a luz do fim da tarde. Ao longe, um arco-íris. Ninguém tem tempo para perceber isso. Todos tem uma batalha pessoal para travar. A minha é com o maldito passe de metrô, que perdi em algum bolso.

Encontro o passe. Vou para casa.

18h20. Encontro, algo raro, um exemplar do USA Today de anteontem jogado em cima de um banco do trem. A reportagem de capa é sobre a divisão de Jerusalém. A repórter entrevista um israelense que foi o chefe do que foi um museu da Jerusalém, aberto depois que os dois lados da cidade foram unificados, em 1967. Depois, com a cidade ainda dividida na prática, foi fechado. O diretor do museu fala de sua frustração. O repórter então descreve com detalhes como é a fronteira entre o leste de maioria palestina e o restante da cidade. Mais israelenses são ouvidos: um falando que os palestinos são sujos. Outro falando que o caminho da paz nunca deve ser abandonado. Um palestino também é entrevistado. É amigo de um israelense, vive em Jerusalém. Os dois conversam, fazem piadas. Mas não se sabe por quanto tempo vão poder continuar fazendo isso.

Jerusalém é a capital de Israel e é a capital dos palestinos. Mas não pode ser a capital dos dois povos. O território de Israel era antes ocupado por milhares de palestinos que agora são refugiados na Síria, no Líbano e nos próprios territórios palestinos. Israel rejeita o direito de retorno dos refugiados, porque ele coloca em risco, obviamente, a existência do Estado de Israel. Colocando os nomes nos bois: dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço. De modo que a resolução do conflito árabe-israelense passa por provar que uma lei física universal não precisa ser respeitada. Sugiro que palestinos e israelenses sejam, então, todos transportados para outra dimensão, talvez o interior de um buraco negro, onde as leis físicas podem não funcionar como funcionam aqui. Por que na Irlanda do Norte, há espaço para católicos e protestantes. Em Angola, há espaço para ex-guerrilheiros e soldados do governo. No Chipre, as discussões avançam, e há espaço para turcos e gregos. Mas em Israel, não.

22h45. George Mitchell, o chefe da comissão que elaborou o documento com o que podem ser as bases de um futuro processo de paz, é um sujeito que eu admiro. É o único que eu já vi manter uma postura calma e absolutamente controlada durante uma conversa com o Jeremy Paxman. Paxman pergunta ao ex-senador se ele concorda com a afirmação de George W. Bush de que Ariel Sharon é um homem de paz. Mitchell se esquiva de fazer um juízo de valor. "O que é claro, o que a história mostrou, é que nunca a solução armada é a melhor solução." Mitchell confia que o caminho ainda é a negociação. A diplomacia. A diplomacia. Há quanto tempo você ouve a mesma palavra sendo pronunciada em Israel? A diplomacia morreu. O Oriente Médio é a melhor prova de que a diplomacia é ineficiente. Que até certo ponto, dá para resolver as coisas conversando. Depois, quando os dois lados envolvidos viram animais, viram inumanos, viram irracionais, não resolve nada. Sinto pena dos pacifistas israelenses, dos moderados palestinos, dos articulados dos dois lados, dos que ainda não foram contaminados pelo ódio. Eles são impotentes. Serão as próximas vítimas da irracionalidade. E o pior que todo o mundo será a próxima vítima. Eu sou a próxima vítima.

O palestino, hesitante, tira as mãos do pescoço do israelense e aponta para o outro lado do rio. Eu vejo a lua cheia, branca, forte, limpa, inteira e indivisível, brilhante iridescente, abrir caminho por entre as nuvens, milagrosamente, misteriosamente, inexplicavelmente, rapidamente. Eu estou deste lado do rio. Do outro você não está. Mas estamos todos sob a mesma lua.

Para ir além

Leia meu texto Espírito do Ódio

Arcano9
Londres, 29/4/2002

 

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