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Terça-feira, 30/4/2002
O cidadão Welles
Bruno Garschagen

Ver os filmes de George Orson Welles (1915-1985) é se deparar com uma forma grandiosa de fazer cinema. Welles priorizava os diálogos e imagens, aproveitava as sombras, valorizava cada cena. O telão era a moldura para a arte em preto e branco. Cada película, cada tomada, cada corte, cada ângulo, cada frase, cada parte finalizada era trabalhada com o mesmo esmero de um artesão. Como se a câmera fosse um formão e com ela o cineasta norte-americano delineava com cuidado os contornos da obra. Welles fazia filmes para quem olha além da superficialidade invariavelmente contida nessa arte de transformar fragmentos da vida e da literatura em ficção; para quem gosta de absorver todas as nuances; de sorver cada cena como se fosse a última. Por isso é que digo, sem medo de parecer frívolo: a pipoca matou o cinema.

Orson Welles dirigiu, atuou, escreveu algumas dezenas de filmes para o cinema e ainda criou vários textos para teatro, rádio, televisão. Sua biografia dá conta de ter dirigido 27 filmes entre os 113 que compõem sua extensa carreira multifacetada, que incluía ainda as de montador e produtor. Era um abnegado. Um desses seres raros que não separam a vida da arte (por mais batida que esteja a afirmação); que não vêem o trabalho simplesmente como forma de sobrevivência, muito embora viver com os olhos num único foco desgaste qualquer cabra, inclusive os gênios. Foi o maior responsável por inspirar pessoas a se tornar diretores de cinema em toda a história, segundo o diretor Martin Scorcese.

Incansável, o cineasta tocou vários projetos em paralelo a filmes que já estava rodando. Era capaz de viajar o mundo e atuar em comerciais para financiar suas idéias, fazer pontas como ator em filmes baratos e chegou a trocar o salário por apoio a seus projetos. Ou aceitar convites de colegas para atuar, como em Return to Glennascaul - Uma história de fantasma (1951), um curta-metragem filmado num intervalo das gravações de Othello (1952). Welles produzia como um louco. E bem.

Sempre gostei de cinema da forma mais relapsa que alguém possa imaginar. Há pouco tempo venho corrigindo essa falha na minha biografia, me esforçando para conhecer os principais filmes, diretores e acompanhar a crítica especializada. Por isso, não perdi tempo quando me vi diante da oferta de um box com cinco obras de Welles: Cidadão Kane (1941), O Processo, Macbeth (1948), Othello e Return to Glennascaul. Na falta de locadoras nesta waste land que me oferecessem esse prato requintado, tive que comprá-lo. Deveria tê-lo feito há mais tempo. Esta ressalva serve para advertir quem se atreveu a percorrer estas linhas de que o texto foi elaborado por um neófito atrevido que, não raro, mete o bedelho onde não é chamado, o que, perdoem, não quer dizer nada.

Estréia com Shakespeare
O precoce Welles já era, aos 18 anos, ator famoso no teatro experimental irlandês. A estréia na Broadway aconteceu um ano depois na montagem de ''Romeu e Julieta''. A ligação com Shakespeare vem desde o começo da carreira. A primeira montagem como produtor e diretor foi com Macbeth, no New York Federal Theatre Project. Participou do evento por conta do diretor e produtor John Houseman, de quem se tornara amigo e com quem havia trabalhado. A versão do clássico de William Shakespeare teve o Harlem como palco e atores negros protagonistas. Com Houseman, Welles criou a companhia Mercury Theatre. Tocaram diversos projetos. Destaque para a montagem de ''Julio Cesar'', em 1937. Roteiro do cineasta norte-americano e ambientação da história na Itália fascista. Em 1938, Welles gravaria seu nome na história dos EUA numa da mais inusitadas transmissões de rádio de que se tem notícia. Apresentador de um programa semanal sobre teatro na rádio CBS, um dos principais meios de comunicação da década de 1930, Welles resolveu pespegar uma peça nos ouvintes justo naquele Halloween. Enxertou boletins durante o programa com citações do livro ''A Guerra dos Mundos'', de H.G. Wells.

Os ouvintes receberiam pela voz de Welles a informação de que marcianos desembarcaram na Terra e (é incrível!) iniciavam uma invasão logo por Nova Jersey (só os megalomaníacos dos norte-americanos para acreditar que a turma de Marte escolheria aquele recanto em graça para estrear a festa neste mundo). Se valendo da técnica de ator, o futuro cineasta imprimiu todo o seu talento para convencer que o que estava sendo narrado, de fato, estava acontecendo. E muita gente acreditou, entrou em pânico e fugiram de suas casas - se fosse no Rio, a turma ia procurar a nave na praia e, se encontrasse algum espécime marciano, convidaria-o a tomar um chope no boteco mais próximo; se fosse em Sampa, todos correriam até a Avenida Paulista a fim de arrendar a nave para visitação pública; criar um shopping center móvel; ou fazer uma bienal futurista.

O sucesso da farsa encheu os olhos de executivos da RKO, que carregaram Welles para Hollywood. Acerto fechado, o cineasta levou US$ 250 mil adiantados para dois filmes. Garantiram liberdade irrestrita. Welles, como queria desde o início, estava livre para criar, produzir, escrever roteiros, dirigir, atuar. O danado ainda conseguiu, de forma ainda inédita, a promessa de ganhos percentuais sobre os lucros.

A Marca do Cidadão
no cinema mundial
Os filmes mais festejados de Welles são a Marca da Maldade e Cidadão Kane, que se tornou o clássico que todo jornalista que se preza já assistiu - embora eu prefira, dos que enfocam o jornalismo, Todos os homens do presidente. Mesmo assim, Cidadão Kane é um Chica-Bon. Na obra-prima do cinema mundial, Welles se valeu, pioneiramente, de recursos como a profundidade de campo retirando tetos nos cenários, além de ter inaugurado a trajetória psicanalítica do roteiro. Até então, nenhuma obra do cinema havia usado o flashback como método de remontar o passado. É impossível avaliar o filme sem pegar pela mão da história, levando em conta o que era feito e o impacto gerado na época pela ousadia inventiva de Welles.

O filme narra a história de Charles Foster Kane, interpretado pelo cineasta, um empresário que se tornou proprietário de um império jornalístico. Kane morre solitário em sua mansão logo no início e murmura a palavra "rosebud". Um repórter tenta, ao longo do longa-metragem, decifrar o enigma. Entrevista amigos e conhecidos do milionário. Ao final do filme, sob as chamas, o mistério se desnuda. Mas não pode comer pipoca, senão perde o fio da meada.

Cidadão Kane se tornou um marco do cinema mundial. Indicado em quatro categorias (ator, direção, roteiro, roteiro original), ganhou o Oscar de Melhor Roteiro Original. Perdeu o prêmio de melhor filme para Como Era Verde o Meu Vale, de John Ford, apontado como um filme menor. Com liberdade para trabalhar, Welles explorou profundidade de campo, ação entrecortada num mesmo ambiente, planos longos, movimentos de câmera e edição rápida. Técnicas até hoje usadas. E o cineasta só tinha 25 anos quando revolucionou a estética cinematográfica.

O personagem da obra de Welles foi inspirado no empresário Willian Randolph Hearst, milionário das comunicações na época, que tentou proibir o lançamento da obra. Hearst era o mentor de uma imprensa marrom criadora de escândalos e um dos mais influentes e poderosos homens da época. Por 40 anos, se manteve como o maior magnata das comunicações nos EUA.

O filme atingiu em cheio o vaidoso Hearst, que não teve qualquer pudor ao organizar uma campanha para acabar com Welles e, logicamente, tirar o filme do mapa. A pressão e a influência foram tão fortes que Louis B. Mayer, o chefão da MGM, aceitou de pronto participar do ataque. Outro despudorado, que mandou um dos executivos da empresa (Nicholas Schenk) telefonar para George J. Schaefer, presidente da RKO, com o propósito de oferecer US$ 800 mil pela destruição dos negativos e de todas as cópias já feitas de Cidadão Kane. Proposta recusada. O curioso é que, se aceita, a oferta seria, de imediato, financeiramente mais vantajosa a RKO, que assumiu prejuízo de cerca de US$ 160 mil pelo filme, mais curiosamente ainda, aceito pela crítica e público. A situação se reverteu anos depois com os relançamentos. A celeuma com Hearst impingiu a Welles a fama de maldito, adjetivo muito comum para desqualificar ou reduzir a importância dos que enfrentam o establishment por sua arte.

Cortes, viagem ao Brasil, demissão
"Soberba" (The Magnificent Ambersons, 1942) é o segundo filme do cineasta. Não haveria título mais apropriado (o em inglês, viu?) para Welles jogar na tela sua visão sobre a sociedade norte-americana. No embalo de Cidadão kane, se valeu, basicamente, das mesmas técnicas de filmagem. Welles veio ao Brasil logo que finalizou "Soberba". Queria filmar o documentário É Tudo Verdade (It's All True). No meio dos jangadeiros nordestinos, Welles nem imaginava que os executivos da RKO editavam o filme (cortaram 43 minutos, é mole?). Pego de calças curtas quando retornou aos EUA, o cineasta ficou decepcionado. Mesmo assim, atuou na supervisão de "Jornada do Pavor" (Journey Into Fear, de 1942), dividindo a direção com Norman Foster. Por conta do mal-estar com a RKO, correu o boato de que Welles dirigia o filme pelo telefone (!). A decepção, no entanto, ainda teria mais combustível. O fracasso comercial de "Soberba" cortou as cabeças de Welles e de sua equipe.

A intimidade com a obra de Shakespeare permitiu ao cineasta, em Macbeth e Othello, transpor de forma primorosa para o cinema uma visão própria do universo shakespeariano. Macbeth, por exemplo, foi rodado em três semanas de 1948 com orçamento reduzido para um clássico da literatura e para o que estava acostumado a receber por suas filmagens. O longa-metragem (120 minutos) narra a história de Macbeth, que, ao saber da profecia feita por três feiticeiras, de que se tornaria rei da Escócia, usa de todas as armas para satisfazer sua ambição. Mata o rei, depois um antigo companheiro da cavalaria, transformando a coroa num reinado de sangue e destruição. A entonação grave na voz de Welles, no papel de Macbeth, parece ter sido criada especialmente aos diálogos do inglês elisabetano de Shakespeare.

Em Macbeth, como em Othello, é interessante o "ar" teatral da montagem. O cineasta abusa dos ângulos de câmera - inusitados para a época - e, mesmo assim, consegue manter vivo o environment do teatro. Como ator, Welles oscila entre momentos regulares e bons. Nesses dois filmes, produzidos num intervalo de quatro anos, não consegue mudar o perfil dos protagonistas. As mesmas expressões faciais, o mesmo tom grave na voz, os mesmíssimos movimentos em cena. Se não fossem os cabelos encaracolados e a pele devidamente maquiada de cor negra, não conseguiríamos diferenciar Macbeth de Othello. Exigir demais? Na linha de tiro, até os gênios estão sujeitos ao papel de alvo.

Tragédia à trois e música
Para seguir na linha, que não mais é a de tiro, digo que achei Othello duca! Iago e Desdemona completam a tragédia à trois do inglesinho porreta. Quando chegou às telas, em 1952, era a 12ª versão da obra par o cinema. As filmagens foram rodadas na Itália e no Marrocos. Duraram dois anos. Problemas de produção e falta de dinheiro. George Bernard Shaw dizia que se meter com o teatro de Shakespear (ele escrevia dessa forma, sem o "e" final) deveria ser responsabilidade restrita aos críticos musicais. "Em suma, é a partitura e não o libreto que faz a obra permanecer viva e fresca". Sabendo ou não da sugestão do dramaturgo e jornalista irlandês, Welles preservou no filme a musicalidade do texto original.

Outro belíssimo trabalho de Welles é a filmagem de "O processo", de Franz Kafka. O diretor consegue transpor para as imagens toda agonia de Joseph K. com uma estética em preto e branco expressionista. K., interpretado de forma irrepreensível por Anthony Perkins (é, o Norman Bates de Psicose), é preso numa certa manhã sob a acusação de ter cometido um estranho crime. Sem direito a qualquer direito ou defesa.

A expressão de pavor de Perkins causa arrepios. Joseph K., no livro, não assusta tanto. Parece mais insano do que no papel que anos mais tarde lhe daria status em Hollywood. Welles, que interpreta um advogado bonachão que dá molho num trecho da história, abusou das sombras. O filme é tão carregado de angústia que meu vídeo não quis rebobinar a fita no final. Tive que esperar dois dias. Hoje, seis meses depois, ainda tenho medo em rever e o aparelho mastigá-la em protesto.

A película é tão densa e desconcertante, que Kafka provavelmente ficaria desconcertado com o efeito da adaptação de sua literatura pro telão. Ou, como fizeram vários escritores, desconsideraria o filme por ter deixado de lado a "sutileza" da obra, seja lá o que isso signifique. Mas cinema é cinema e literatura é literatura, duas artes que antes se complementam do que se convergem.

Reverenciado por muitos e criticado por alguns, o diretor se manteve como um dos mais íntegros e produtivos do cinema mundial no século vinte, tendo inclusive, recebido em 1970 Oscar honorário pelo conjunto da obra, o que, me perdoem o niilismo, não quer dizer nada. Mostrou, de forma irrefutável, a possibilidade de fazer do cinema uma belíssima forma de arte contemplativa. Sem concessões ou abusos contra o espectador. E sem dar espaço ao comedor de pipoca.

Filmografia
Cidadão Kane (Citizen Kane, EUA, 1941);
Jornada do pavor (Journey Into Fear, EUA, 1942);
Soberba (The Magnificent Ambersons, EUA, 1942);
O Estranho (The Stranger, EUA, 1946);
A Dama de Shangai (The Lady From Shanghai, EUA, 1948);
Macbeth - Reinado de Sangue (Macbeth, EUA, 1948);
O Terceiro Homem (The Third Man, EUA, 1949);
O Retorno a Glennascaul (The Return to Glennascaul - Orson Welles' Ghost Story, Irlanda, 1951);
Othello (Othello, EUA, Itália, França, Marrocos, 1952);
Três Casos de Assassinato (Three Cases of Murder, Inglaterra, 1954);
Mr. Arkadin (Mr. Arkadin, EUA, 1955);
A Marca da Maldade (Touch of Evil, EUA, 1958);
O Mercador de Almas (The Long Hot Summer, EUA, 1958);
Os Bravos Tártaros (The Tartars/I Tartari, Itália/Suécia, 1962);
O Processo (The Trial, Alemanha/França/Itália, 1963);
Verdade e Mentiras (F for Fake, EUA, 1973).

As news da Yorker
Vale a pena ler a entrevista de Pauline Kael, falecida em 1991, ao jornalista Francis Davis, publicada no site da revista The New Yorker. Lúcida, refinada e inteligentíssima, Pauline conseguia dar uma dimensão extraordinária aos filmes que comentava. É autora de um ensaio sobre Cidadão Kane no qual não economiza adjetivos para desconstruir Welles. Sentou a pua na obra e não creditava ao cineasta qualquer influência no roteiro. No início da entrevista, o jornalista confessa que ficou desesperado para ver o filme Masculino-feminino, de Jean-Luc Godard, após ler a resenha de Pauline na revista The New Republic. Ah!, a inveja.

Eufemismo
Sexo. Churrasco. Homicídio. O homem é, antes de tudo, um animal carnívoro.

Bruno Garschagen
Cachoeiro de Itapemirim, 30/4/2002

 

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