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Quinta-feira, 9/5/2002
Carai!
Adriana Baggio

Como num manjadíssimo roteiro hollywoodiano, suspeitas de intriga, favorecimentos e defesa de interesses escusos permearam a escolha de Abril Despedaçado como o filme brasileiro que concorreu à última edição do Oscar. O escolhido entre 10 concorrentes tão bons quanto ou até melhores, foi acusado ter sido privilegiado por sua premeditada adequação à disputa do prêmio que move a indústria cinematográfica norte-americana - e agora, move nossa indústria também. Se é que se pode caracterizar como indústria a produção cinematográfica brasileira. Usando o próprio filme de Walter Salles como metáfora, estamos mais para o artesanal engenho de açúcar da família Breves do que para as novas usinas a vapor do início do século XX. Ou seja, nossa rapadura demanda mais tempo e trabalho para ser produzida, não consegue competir com a produção em larga escala da rapadura da usina do vizinho e é vendida no mercado a preço de banana. Tudo bem, a carroça foi para a frente dos bois. Mas isso é até bom, porque Abril Despedaçado merece ser apreciado independentemente das tramóias dos bastidores. Então é melhor se concentrar nas engrenagens do moinho de cana do que nos intricados mecanismos que movem - ou emperram, não sei - a política cultural do governo brasileiro.

Abril Despedaçado, com direção de Walter Salles (Central do Brasil, Terra Estrangeira), é adaptação do livro do albanês Ismail Kadaré. A história foi transposta para o ano de 1910, no sertão do nordeste do Brasil (é a tal da locoglobalização; na abertura do filme, um lettering contextualiza espaço e tempo: Sertão Brasileiro, 1910. Se o filme não tivesse uma preparação para o mercado internacional, não precisaria explicar o cenário. Mas deixa esse assunto pra lá...). A disputa de terras entre duas famílias deu origem a uma vendetta que se arrasta há anos. Na prática do olho por olho, dente por dente, cada morte em uma das famílias é vingada com morte na outra. Assim, o filme começa mostrando o assassinato do filho mais velho da família Breves. Seguindo a engrenagem, o personagem Tonho, irmão do morto, interpretado por Rodrigo Santoro, tem por missão lavar a honra dos Breves matando o correspondente da família Ferreira. A morte do rival determina a morte do próprio Tonho. Será a vez dele quando o sangue da camisa do Ferreira amarelar. A família Breves passa a viver em função da morte anunciada, sem questionar a validade dessa "tradição". O único a se revoltar é o irmão mais novo de Tonho, interpretado pelo ator-mirim Ravi Ramos Lacerda. No período de espera pela hora da vingança, certos acontecimentos quebram a rotina sofrida da família. Perdidos no caminho, um artista mambembe e sua enteada pedem informação ao personagem de Ravi, que não tem nome, é chamado apenas de "menino". A moça dá um livro e ele. Mais tarde, os dois irmãos vão à cidade para ver o circo, e se encantam com a artista engolidora de fogo. Um pela associação com a magia das figuras do livro, e outro pela imagem real da mulher. A ida ao circo é castigada pelo pai. Após esse confronto, Tonho sai de casa e coloca a honra da família em risco, ao interromper o andamento da engrenagem da vingança. A partir daí a história começa a caminhar para seu destino final, que muitos chamam de trágico.

Cores e metáforas
A história de Abril Despedaçado parece não ser mais do que um pretexto para as metáforas do diretor e as belas imagens de Walter Carvalho. É um filme de tirar o fôlego pelas cores que apresenta, pelos movimentos de câmera, pela linguagem que vai muito além das palavras. Existe nas imagens de Abril Despedaçado uma crítica social e até política, mas são as referências aos aspectos comuns da vida que tornam o filme mágico, encantador. Em primeiro lugar, as cores: Walter Carvalho pintou tudo de azul, marrom e amarelo, principalmente amarelo. O amarelo está presente na luz inclemente do sol do sertão; no sangue que seca na camisa e anuncia a hora da vingança; no parco fogo que ilumina as casas humildes do fim do mundo; no fogo sensual que a personagem Clara, artista mambembe, engole e guarda dentro de si; no caldo de cana fervente que vai virar rapadura. O azul é o céu e o mar para onde se vai e não se morre, e o marrom o inferno da terra sem esperança. O céu e a terra são os únicos limites conhecidos pelo menino dos Breves para indicar a localização do lugar onde mora, Riacho das Almas. Como ele mesmo diz, em sua sabedoria ignorante, o riacho já secou faz tempo, só sobraram as almas. Almas como as de Gogol, contadas como cabeça de gado, e as almas dos mortos que determinam o ciclo de vida dos vivos nas engrenagens da vendetta.

A fatalidade é tão naturalmente aceita pela família que não se deram nem ao trabalho de batizar o filho mais novo. O menino, como é chamado, ganha o nome de Pacu, dado pelo artista mambembe no dia em que vão ver o circo. Enquanto Tonho parece ser alfabetizado, Pacu não sabe ler nem escrever. No entanto, mesmo abandonado à sorte e valendo menos, talvez, do que um dos bois que rodam o moinho, Pacu tem sabedoria, lirismo e dignidade. Consegue ver, mais claramente do que todo mundo, o absurdo da situação em que vivem. Mesmo sem saber direito o que fazer, Pacu tenta fugir do destino já traçado com os meios que encontra pela frente. É assim com o livro que ganha de Clara. Apesar de não entender o que está escrito, tem consciência de que pode ler as figuras. E a partir daí constrói uma história diferente para si mesmo. Seu paraíso é representado pelo mar, que ele nunca viu, mas que imagina ser um lugar onde não se morre e onde há espaço para todo mundo, ou seja, onde não há disputa de terras nem vingança. A seqüência onde Pacu explica a Tonho o que está lendo é impagável. O menino tem resposta para tudo. Numa das cenas mais engraçadas, diz ao artista mambembe que faz gozação com ele por não ter nome: "é melhor não ter nome do que se chamar Salustiano". Apesar do caráter trágico ou no mínimo dramático do filme, as risadas não são deslocadas. O riso não é provocado por piedade ou nervosismo. É um riso permitido pela dignidade e honestidade com as quais o personagem encara sua situação. Ingênuo, inocente, e apesar de tudo, alegre, Pacu mostra seu entusiasmo pelas coisas belas quando solta um empolgado "carai" (é a corruptela disso mesmo que você pensou).

Roda do tempo
A história é toda permeada pela noção de tempo. Tempo cronológico, contado pelas luas e pelos dias que antecedem a Páscoa, e tempo de espera para que as coisas aconteçam. O abril despedaçado no filme é o abril da festa da Ressurreição. O tempo cronológico entre a morte que Tonho causou e a de que vai ser vítima parece uma quaresma, um tempo de contemplação, de reflexão, de sacrifício. Tanto que o patriarca dos Breves castiga o filho na volta do circo, justificando para isso a época em que estão. A quaresma coincide com o período de luto pelo primogênito morto, assim como o simbolismo da Páscoa vai se confundir com o destino do outro filho da família.

Já o tempo de espera é representando vezes pelo movimento giratório do moedor de cana puxado por bois, vezes pelo movimento pendular do balanço do quintal dos Breves. Uma das cenas mais lindas do filme mostra o menino balançando alto, livre, com a montanha ao fundo, o céu azul no alto e a árvore seca e encarquilhada segurando as cordas. Como um pêndulo de relógio, o balanço marca a espera de Pacu por Tonho, e marca a lembrança de tempos felizes quando Tonho e Pacu eram mais novos. Já o pêndulo do relógio de verdade da casa da família Ferreira, a rival dos Breves, marca o tempo que resta de vida para Tonho.

O moinho de cana é o relógio da vida da família. Tudo gira em torno da cana que é moída para virar caldo, que depois é fervido e transformado em rapadura. As imagens alternam cenas abertas do moinho sendo girado pelos bois, e cenas fechadas das engrenagens que movem a máquina, como um relógio mesmo. Uma das metáforas mais duras do filme mostra que o destino da família é não sair daquele lugar físico e nem das engrenagens da vingança. Certo dia um dos bois que movimenta a roda cai pelo esforço e a máquina pára. O trabalho é interrompido. A próxima cena mostra Tonho de costas carregando a canga que segurava os bois, como se a canga fosse para ele. Em seguida, a tela mostra os bois andando sozinhos, em círculo, em volta do moinho. A visão da metáfora da própria vida é demais para Tonho, que larga a canga e vai embora.

A consciência de que vai morrer de qualquer maneira faz com que Tonho procure se libertar da canga e caminhar em um sentido diferente daquele andar em círculos que tem sido a vida da sua família. Vai ao encontro de Clara e Salustiano e parte com eles para uma cidade maior, Ventura, para os festejos de Páscoa. É sábado de Aleluia e a cidade ferve em animação na praça. Enquanto Salustiano conversa com um amigo, Clara sobe em uma corda na praça e começa a rodar, em uma acrobacia circense. Tonho roda a corda com Clara durante muito tempo, até o anoitecer. É difícil não perceber nos movimentos de Clara e Tonho uma relação sexual platônica, que culmina num êxtase, mais perceptivo do que físico, de que cada um pode seguir um caminho diferente daquele para o qual foi destinado.

Prata da casa
Junto com as metáforas e as belas imagens, os movimentos de câmera fazem o filme valer a pena. A câmera se coloca em posições diferentes durante a história. Uma das melhores cenas é a da perseguição de Tonho para matar o rival da família Ferreira. Os dois correm entre as plantas secas da caatinga, que ora mostram, ora escondem o perseguido de seu caçador. Quem está no cinema quase consegue sentir os ramos arranhando o rosto durante a corrida desesperada. A câmera segue também os movimentos de vai e vem da rapadura sendo colocada nas caixas para a venda na cidade, e o espectador sente o peso das barrinhas que não vão valer nada no mercado. Mas a sensação mais viva é de tontura, quando a câmera acompanha o movimento do balanço. Cuidado para não vomitar no coitado que estiver à sua frente. Em um desses momentos, a câmera está colocada exatamente na cara de Pacu, e pode-se ver a expressão de felicidade do menino em primeiro plano, enquanto que, por trás dele, o chão e paisagem correm desfocadas pelo movimento do brinquedo. Em outro momento, a câmera está posicionada no alto da corda que segura o balanço. Dá para ver o corpo esticado de Tonho sobre o balanço, e embaixo dele, ora a terra do chão, ora o azul do céu.

Se Abril Despedaçado foi feito assim para ganhar o Oscar, que bom. A nova safra de filmes brasileiros tem sido elogiada pela qualidade de seus roteiros. O filme de Walter Salles, apesar de contar uma boa história, tem seu maior mérito na forma original com que foi realizado, na beleza da fotografia e no simbolismo que carrega. Peca um pouco quando tenta explicar as metáforas, ou porque subestima o telespectador, ou porque precisa deixar tudo mastigado para ser palatável ao público norte-americano. Para os paraibanos, o sucesso de Abril Despedaçado tem um sabor todo especial: alguns dos maiores talentos do filme são daqui. Ravi Ramos Lacerda, o ator que interpreta Pacu, é de João Pessoa, e quando criança imitava Charles Chaplin na capital paraibana. Luiz Carlos Vasconcelos, o Salustiano, e Everaldo Pontes, o cego patriarca da família Ferreira, também são paraibanos. Assim como Walter Carvalho, que conseguiu levar para as telas a beleza das cores duras e mágicas do sertão nordestino.


Adriana Baggio
Curitiba, 9/5/2002

 

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