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Quinta-feira, 9/5/2002
Por pura obrigação
Alexandre Ramos

Como faz pouco que deixei de ser monge e me casei, tive muitos escrúpulos em dar pitaco nessa dolorosa questão da pedofilia na Igreja, afinal agora sou um simples leigo, etc, etc. Fiquei mais azedo ainda porque o único sujeito que, embora com um ou outro ponto discutível, está abordando o assunto do modo como eu gostaria é o Olavo de Carvalho, que não é católico. Mas como não quero deixar passar completamente, especialmente depois de tanta babaquice, hipocrisia e ignorância que tenho visto na imprensa, com destaque para um artigo muito besta do tal do Arnaldo Jabor nŽO Globo, recheado de má-fé. Daí que cheguei a um meio-termo comigo mesmo e ofereci a este Digestivo um artigo que escrevi ano passado, para tratar da amenidade do estupro de freiras por padres, tema, como se vê, afim àquele sobre o qual preferi ficar na minha.

Sempre fui e continuo sendo contra o celibato do clero diocesano, mas creio que este é o pior momento para se falar numa revisão dessa disciplina na Igreja do Ocidente. Aqui no Brasil, especialmente, gente como D. Paulo Arns, que acha que padre é assistente social, dirigente sindical e líder político devia mais era ficar na sua, pois são eles os responsáveis diretos por vários descalabros do nosso baixo-clero (se bem que o "alto", com os bettos & boffes, francamente...). Mas vamos lembrar que pedofilia acontece muito mais nas famílias, nas escolas e nos consultórios médicos do que nas igrejas. Segue o artigo. É de abril de 2001 e o título original é "Senhor, tende piedade de nós".

* * *


Hoje vai ser difícil. Tenho me proposto a fazer comentários, a partir da doutrina católica, sobre temas de destaque na imprensa. Mas tive muita vontade de não tocar no caso dos estupros de freiras por padres, e mesmo agora está doendo para escrever.

Primeiro. Lugar de estuprador, mesmo que seja padre, é na cadeia. E, se possível, com uns tabefes muito bem dados.

Segundo. Essa desgraça, que ocorre em pequena escala no mundo inteiro, é mais freqüente na África, onde uma cultura multissecular, que favorece esse tipo de coisa, subsiste logo abaixo de um cristianismo ainda epidérmico. Seria uma boa hora para dar um toque nesses imbecis que dizem que as culturas tem que ser "respeitadas" a qualquer preço, e de lembrar, aqui nestas bandas "pós-modernas", como fez com precisão Esther Hamburguer, que "uma das perversidades da cultura contemporânea é a banalização do amor. Transformada em bem supremo, entendida de maneira individualista, sem muito espaço para o compartilhar de emoções complexas, quase que reduzida ao gozo, a realização amorosa se transforma em um ideal que justifica a instabilidade dos envolvimentos, encoraja e direciona o consumo e empobrece a convivência", fazendo de todos nós pouco mais que joguetes entre os impulsos dos instintos - e do mal que habita em nós - e os imperativos do mercado. Mas é justamente o respeito às vítimas que me impede de desenvolver o assunto.

Terceiro. Como disse o Pe. João Edênio do Valle, não é a abolição do celibato que vai resolver isso. "É como no casamento", diz ele. "Hoje, metade da população está no segundo, terceiro casamento. Como relação, está na quarta, quinta, oitava. As opções, para ter consistência, continuidade, precisam ser fruto de uma atitude pessoal".

É até estúpido querer discutir o celibato nesse contexto. Aliás, fora essa desgraça, que tem um caráter muito específico, os estupradores não são celibatários. São homens solteiros ou casados que partem para cima de mulheres desconhecidas, colegas de trabalho ou estudo, e há até, e são muitos, os que violentam suas próprias esposas e filhas. É verdade, porém, que o que está em jogo aqui nem é tanto o celibato, mas o caso de ministros religiosos, homens que pregam o amor ao próximo em nome de Deus, fazerem uma coisa dessas.

Dá para dizer muita coisa, não para aliviar a barra - que isso não é nem possível nem desejável - mas para colocar os fatos em uma perspectiva tão justa quanto possível, mas honestamente não tenho ânimo de fazer isso. E o que vou fazer, do fundo da minha revolta e de uma tristeza maior ainda, talvez irrite o leitor.

A Igreja tem obrigação de dar todo apoio possível às vítimas, de prover as mães e seus filhos de tudo o que for necessário para uma existência digna, sob pena de conivência com o crime. Tem obrigação de colaborar para a apuração dos fatos, para um julgamento justo dos acusados, e para a punição dos culpados. E estes, na cadeia, que é o lugar deles, têm todo o direito de esperar consolo e apoio das autoridades eclesiásticas. Se pecado, por grave que seja, excluísse alguém da solicitude materna da Igreja, o boteco já teria fechado há muito tempo.

Quando um pecado - qualquer pecado - é cometido, a primeira e maior vítima é justamente o pecador. Porque o maior dano que uma pessoa pode sofrer é o afastamento de Deus, e a vítima de uma violência não é afastada de Deus, mas o agressor é.

Sei perfeitamente que nem eu nem ninguém próximo a mim passou por um horror desses, como o estupro, a tortura, ou o que os nazistas fizeram com os judeus. Se minha irmã, por exemplo, fosse vítima de uma violência assim, apesar dos meus oito anos de mosteiro seria imensa a tentação de pegar uma arma e ir atrás do desgraçado resolver o assunto pessoalmente.

Mas, ou nós acreditamos naquilo, ou não somos cristãos. Ninguém disse que ser cristão é fácil, o próprio Jesus fez diversas vezes advertências muito sérias sobre as conseqüências terríveis em que implica o seu seguimento, e, ora, se com ele aconteceu o que aconteceu, porque seria diferente conosco? Ou, de outra maneira: violência todo mundo sofre, cristão ou não, a diferença está na forma como reagimos a isso.

Quando um membro do corpo sofre, todo o corpo sofre. Quando um membro do corpo é exaltado, todo o corpo é exaltado. Até aqui, São Paulo. Na mesma linha, um dos antigos monges do deserto dizia: "Se vires teu irmão pecar, ajoelha-te, bate no peito e diz: 'Senhor, perdoa-me porque eu pequei'". Finalmente, num romance de que gosto muito e que rendeu um grande filme, W. P. Blatty faz o seu Exorcista dizer que "o objetivo do demônio é nos levar ao desespero, a rejeitar nossa própria humanidade. A nos considerarmos, em última análise, bestiais, sem dignidade, hediondos, indecorosos. Talvez seja esta a explicação: o sentimento de abjeção. Porque eu acho que a crença em Deus não é, de modo algum, uma questão de raciocínio; eu acho que se trata, afinal, de uma questão de amor, de aceitar a possibilidade de que Deus seja capaz de nos amar".

Ou levamos a sério que esses padres, tanto quanto as freiras, são nossos irmãos e o que acontece a eles nos diz respeito muito de perto, ou então é melhor mesmo ir comprando uns anjos cabalísticos e aprender a fazer mapa astral.

Lugar de estuprador - se possível, depois de uns tabefes muito bem dados -, mesmo que seja padre, é na cadeia. E nas nossas orações.

Alexandre Ramos
Teresópolis, 9/5/2002

 

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