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Sexta-feira, 10/5/2002
Quem é essa gente?
Alexandre Soares Silva

A dourada Giorgia Flemming brinca de libélula no casamento de Virgínia Koschavsky e André Gallup. O padrinho Nando Sphinx mostra as covinhas para a câmera.

Quem diabos é essa gente? Até os nomes parecem falsos. (Aqui, ó, que alguém realmente se chama Nando Sphinx.) Mas quem é essa gente? A mulher que assina a coluna social parece crente que todo mundo sabe quem é essa gente dourada brincando de libélula. E o que é brincar de libélula? E o que será que Giorgia Flemming faz na vida? Será que ela é neurocirurgiã? Uma neurocirurgiã dourada que brinca de libélula no casamento de Virgínia Koschavsky e André Gallup? Não pega bem, pega? Você deixaria alguém assim operar o seu cérebro?

Mas continuemos: Carina Zaratin abre um sorriso. Ana van Steen ri de tudo (outra que eu espero que não seja neurocirurgiã). Patrícia Carta ouve Chris Saddi. Pedro Piva troca idéias com Lucília Diniz (quais? Fiquei curioso). Bom, alguns sobrenomes são famosos: famílias que enriqueceram vendendo desinfetante e banana. Mas os primeiros nomes não são. Fico imaginando que foram simplesmente inventados pela colunista social, que não tinha tempo, nem paciência, pra ir de fato ao casamento de Virgínia Koschavsky e André Gallup. Na verdade, espero que essa gente tenha sido inventada. Graças a Deus, nunca conheci ninguém que se chamasse Nando Sphinx; não acredito que exista ninguém chamado Nando Sphinx. E se alguém apertar a minha mão e disser, "Olá, sou Nando Sphinx", dou-lhe um murro, pra ele deixar de ser besta. Cinco anos de kung-fu devem ter servido para alguma coisa.

Brinca de libélula. Mostra as covinhas para a câmera. Alguém diria isso de, sei lá, Nietszche? O filósofo e bonitón Friedrich Nietszche mostra as covinhas para a câmera no casamento da dourada Giorgia Flemming com a prateada Carina Zaratin? A translúcida Hannah Arendt brinca de panda com o fofo da hora, Martin Heidegger, no Bar-Mitzvah do sapequíssimo Gershon Scholem, sob o olhar benévolo do perene Führer? Não, é claro que não. Acabaria com a reputação de qualquer um. O que me leva à próxima, à mais importante das perguntas:

O que faz essa gente? Que livros escreveram? Que filosofia desenvolveram? São médicos, são astrônomos? Que reputação têm? Qual o talento deles? Por quê, exatamente, se supõe que eu deveria conhecer os seus nomes?

Oh, eu pergunto, mas eu sei, é claro (e você também sabe) que eles não fizeram nada e que não têm talento algum. Se um Anjo Furioso, na noite do casamento de Virgínia Koschevsky e André Gallup, recebesse de Deus a ordem, "Vai naquele salão, e ali chegando separa todos aqueles que não tiverem dentro de si mesmos nenhum talento, e em Meu Nome mata-os sem piedade", ninguém sobraria vivo no salão. Ou talvez só a Fernanda Montenegro, tremendo num canto, meio escondida nas cortinas e coberta do sangue dos outros, e se perguntando: "O que diabos eu vim fazer aqui?".

Sei o que vão dizer. Que é inveja, pura inveja. Que no fundo eu bem que queria que dissessem que eu brinquei de libélula no casamento de dois badamecos. Não, não, três vezes não. Aparecer numa coluna social é tão embaraçoso quanto ser descoberto (de bermudas com suspensórios, olhar ingênuo e sorriso estúpido) numa foto antiga da Juventude Hitlerista.

E há mesmo, na verdade, uma conexão entre as pessoas das colunas sociais e as pessoas que aderiram ao nazismo na década de trinta. São pessoas que fazem o que for preciso para se dar bem, ficar amigo de quem importa e fazer parte da gente bonita. Alguém tem alguma dificuldade em imaginar Narcisa Tamborindeguy, numa foto de 1942, "recebendo de braços abertos- ai, que loucura!- os bravos e lindos rapazes teutões na festa que sacudiu ontem o Copacabana Palace"?

E depois dizem que esse negócio de elevador de serviço e elevador social é horrível, racista etc. Se é verdade que é uma invenção brasileira, é uma das poucas boas invenções daqui. No meu prédio, por exemplo, a dourada Giorgia Flemming só subiria pelo elevador de serviço. Reservo o elevador social para as visitas que têm uma saudável cor não-dourada e não brincam de libélula em cima do tapete.

Essa gente é a nossa elite? Outros países tem Robert de Montesquiou, Beau Brummel e o Barão Von Thyssen, e nós temos essa gente? Não, é claro que não - só posso pensar que a nossa elite é secreta: trinta ou quarenta pessoas de gosto e inteligência, vivendo discretamente aqui e ali. Que a nossa elite somos eu e você. Nos escondemos atrás da porta e estamos observando os criados fingindo que são os donos da casa.

Solução de todos os problemas da humanidade

Ando lendo "Dom Quixote" pela primeira vez. Don Alonso Quijano já ficou louco, assumiu o nome de D.Quixote, saiu para viver aventuras, bateu, apanhou, e foi levado inconsciente para casa. Nesse ponto há uma grande cena: o cura e o barbeiro queimam os livros de Don Alonso e mandam emparedar a porta da biblioteca. Don Quixote acorda, vai maquinalmente abrir a porta da biblioteca, e fica raspando a mão na parede, distraído - até perceber que não há mais porta. Alarmado, pergunta para a sobrinha o que aconteceu - e ela diz que um grande feiticeiro foi lá e roubou todo o aposento com todos os livros que iam dentro.

Mas a frase que queria citar acontece logo depois. Don Quixote passa alguns dias tranqüilos na companhia do cura e do barbeiro. Em certo momento, diz a eles "...que la cosa de que más necesidad tenía el mundo era de caballeros andantes y de que en él se resucitase la caballería andantesca".

Quixote, por Segrelles

Bom. E não será verdade? Não é bem possível que seja essa a solução de todos os problemas do mundo? Que todos saiamos estrada afora fazendo justiça e dando porradas em Nando Sphinx? Sim, eu sei que Don Quixote é louco, mas eu o amo de um modo (acreditem) tremendamente não-gay, e acho que o fidalgo da triste figura apontou a única solução que nos resta. E depois, como disse Fernando Pessoa,

"Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?
"

Alexandre Soares Silva
São Paulo, 10/5/2002

 

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