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Terça-feira, 14/5/2002
Chopin não viu, mas deve ter gostado
Bruno Garschagen

Os principais compositores e instrumentistas da música erudita revelam muito cedo a vocação e o virtuosismo, ao contrário da literatura, terreno que apresenta democraticamente gênios que surgem mais novos ou mais velhos, sem uma freqüência linear. E mesmo o talento não garante uma carreira, no mínimo, íntegra, quando se está num país que tem a música clássica na conta de artigo supérfluo. É preciso arrumar as trouxas, estalar os dedos, abrir caminho. Multiplique essa dificuldade por dois. Miriam Ramos nasceu em Cachoeiro de Itapemirim, um pequeno município ao Sul do Espírito Santo. Era mulher naquela década de 1950, época em que o sexo feminino ainda carregava estigmas e preconceitos.

Queria ser pianista. Tinha que sair da cidade. Saiu. Não olhou para trás quando partiu em direção ao Rio de Janeiro para estudar na Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), de onde só saiu diplomada em 1958. Em sua carreira, classificou-se em todos os concursos nacionais de que participou. Obteve 8 prêmios. Por concurso de título e provas, obteve o título de docência livre e Doutor em Música em 1976 na mesma universidade onde se graduou. Também via concurso, tornou-se professora da UFRJ, chegando a titular. Lecionou nos cursos de graduação e pós-graduação, nas cadeiras de piano e didática até 1996. A menina que deixou a pequena Cachoeiro se tornou uma das principais solistas das peças do compositor romântico Frédéric Chopin (1810-1849).

Na semana passada, Míriam, integrante das principais orquestras brasileiras (Sinfônica Brasileira, Sinfônica do Teatro Municipal, Sinfônica Nacional, Sinfônica de Minas Gerais, Sinfônica de Porto Alegre, do Recife, de Curitiba, Pró Música e Orquestra da Rádio MEC), tocou na Escola de Música da UFRJ, na Lapa, leio nos jornais. Não era uma simples apresentação. Era mais um fragmento do importante trabalho de resgate de obras de compositores brasileiros, algumas, inclusive, que nem haviam sido gravadas (Cartas celestes, O rosário de Medjugorjie e Sonata nš 3 para violino e piano, do compositor santista Almeida Prado).

A primeira parte da coleção, composta de quatro CDs, se chama "Intérpretes e Compositores brasileiros". Coordenada pela pianista, traz obras de Almeida Prado, Alberto Nepomuceno, Francisco Mignone e Villa-Lobos, cujas interpretações couberam a Isis Moreira, Talitha Peres, Luiz Senise, Paulo Barcelos. A intenção é fazer com que as pessoas ouçam os compositores brasileiros, até por isso os CDs estão sendo vendidos a R$ 10,00 (todo o valor obtido com a venda será repassado ao Cenáculo Protetor dos Cegos, em Piedade, no Rio).

Dos compositores da coleção recém-lançada, pude ouvir há dois anos, no teatro municipal "Rubem Braga", nesta waste land capixaba, Miriam executar uma peça de Alberto Nepomuceno, "Galhofeira". Se na época, escrevi para um jornal local algumas impressões neófitas, narrarei, como repórter, a apresentação da pianista numa noite daquele mês de junho do ano 2000.

Seus dedos encarnaram a melodia de tal forma que ao fechar os olhos era possível sentir os compositores com suas penas a criar nota por nota as peças nos blocos de partitura. Míriam transformou o piano num arcabouço de sentimentos audíveis. Transpirava sofisticação musical, com a técnica a serviço da harmonia profunda e romântica, só conseguida com o talento e os anos de árduo estudo que o instrumento exige. Mas nem o requinte, o ineditismo e o caráter social da apresentação foram capazes de vencer o ócio cultural dos cachoeirenses.

Somente 55 pessoas - o teatro tem 180 lugares - viram a boa performance da pianista, que estudou também em Paris, Londres e Venezuela, e fez sua estréia internacional na Wigmore Hall, em Londres, em 1980. No ano seguinte, se apresentou no Carnegie Hall, de Nova Iorque. Perderam a primeira apresentação de música clássica no teatro, com excelente acústica. Até então e depois disso, as raras performances se resumem a festas promovidas em locais não apropriados pelo sério, mas tímido, Conservatório de Música de Cachoeiro de Itapemirim.

O ponto falho da noite foi o horrível piano de armário, cujos ruídos e desafinações em algumas partes prejudicaram a audição. Os temas de Chopin e Franz Liszt (1811-1886) foram os mais sacrificados. Durante a semana da apresentação, tudo indicava que seria utilizado um piano de cauda pertencente a um clube social da cidade. Só depois de afinado e lustrado descobriu-se a impossibilidade de retirar o instrumento do salão onde hibernava há anos porque na reforma mais recente as portas foram reduzidas nas larguras. Não riam.

Nada, porém, poderia superar ou atrapalhar a harmonia transbordante das mãos de Míriam, que sugou o vazio musical clássico da cidade para um vácuo sideral, pelo menos por umas duas horas. As escalas e acordes reverberavam suavemente pela acústica do teatro, que sobreviveu a, talvez, mais difícil prova desde a inauguração, alguns meses antes.

Um refletor no teto iluminava de amarelo o centro do palco. O piano, solitário, aguardava a protagonista da noite. A pianista entrou em cena por volta das 20h15 e respirou fundo. Era a primeira apresentação na cidade natal. Sentou à frente do instrumento, olhou para cima de olhos fechados e pareceu encarnar os deuses da música.

Começou pela "Valsa Amazônica", de Arnaldo Rebello. Composição de compassos belíssimos aliados a um frescor ingênuo. Matéria sonora, sensível, romântica, poética.

Mais despojada - sem que o adjetivo soe pejorativo -, "A sertaneja", de Brasílio Itiberê, é muito mais alegre, típica harmonia que não agrada ouvidos mais sisudos apreciadores do alemão Richard Wagner (1813-1883), cuja música encantou Friedrich Nietzsche (1884-1900) e idéias mereceram uma violenta reação na obra "O caso Wagner, um problema para os músicos/ Nietzsche contra Wagner (Companhia das Letras, 117 páginas). Compositor e diplomata, Brasílio Itiberê da Cunha nasceu em Paranaguá (PR) em 1 de agosto de 1846. Seu início ao piano foi feito em casa. Não demorou a tornar-se músico de renome, passando a realizar vários concertos em seu estado natal e em São Paulo, cidade em que fez seu curso de Direito. Aos 34 anos ingressou na carreira diplomática, passando pela Itália, Peru, Bélgica, Paraguai e Alemanha. Conseguiu estabelecer relações de amizade com alguns dos maiores pianistas de seu tempo: Anton Rubinstein (para quem ele escreveu um Estudo de Concerto), Sgambatti e Liszt, que o folclore musical relata ter tocado sua rapsódia A Sertaneja, editada em 1869, e peça escolhida pela pianista cachoeirense. Um dos pioneiros na utilização de temas folclóricos na criação musical erudita, Itiberê teve seu nome escolhido como patrono da cadeira número 19 da Academia Brasileira de Música.

Apesar do título, "A galhofeira" de Alberto Nepomuceno (1864-1920) carrega nos acordes que remetem os ouvidos menos apurados na música erudita às trilhas sonoras de minisséries de época na tevê. Nascido em 1864, em Fortaleza, durante a juventude, mantinha um círculo de amizades integrado por alunos e mestres da Faculdade de Direito do Recife, gente como Alfredo Pinto, Clóvis Bevilácqua, Farias Brito. Foi para lá junto à família em 1872, iniciando seus estudos ao piano e violino.

Nessa época, a faculdade era conhecido centro intelectual do país. Nesse ambiente, pululavam idéias e análises sociais de vanguarda, a exemplo dos estudos sociológicos de Manuel Bonfim e Tobias Barreto, e teorias darwinistas e spenceristas de Silvio Romero. Coube a Barreto o papel de despertar em Nepomuceno o interesse pelos estudos da língua alemã e da filosofia. Tão normal como beber água, os intelectuais da época se posicionaram contrários à monarquia, conduta adotada por Nepomuceno, tornando-se um defensor atuante das causas republicana e abolicionista no Nordeste.

Sua atividade política, entretanto, não atrapalhou sua vida musical. Aos 18 anos assumiu a direção dos concertos do Clube Carlos Gomes de Recife, tendo atuado também como violinista na estréia da ópera Leonor, de Euclides Fonseca, no Teatro Santa Isabel.

Encerrada "A galhofeira", foi a vez da caída precisa das mãos de Míriam sobre as teclas criar uma atmosfera melancólica despertada/reforçada pela melancolia das peças de Chopin. "Andante Spianato" e "Grande Polonaise" percorrem o corpo abrindo uma janela para a reflexão aguda e adulta. Como se por alguns minutos a harmonia nos arrancasse delicadamente o pavimento de concreto que nos liga à matéria; a música nos reveste de um manto confortável e aquecido, que nos traz a nostalgia aguda e lacrimosa do beijo interrompido ou da frase apaixonada que se perdeu num sorriso largo.

O jovem Chopin chegara a Paris em 1831. Levava na bagagem meia dúzia de suas melhores obras e um amor inabalável pela Polônia, sua terra natal. Talento precoce, o pianista estava em excursão pela Europa, especificamente em Viena, onde já estivera quando menino, mostrando seu virtuosismo aos habitantes da capital austríaca.

Embora o gênio nato, começou cedo a estudar música, com apenas 4 anos, alcançando rapidamente o sucesso não apenas em sua cidade, mas por toda a Polônia e até na Rússia. Na mesma Paris, encontra rapidamente a fama e o sucesso. Seu perfil aristocrático contou pontos para ser aceito na sociedade francesa. Além do que, os poloneses contam com a simpatia do povo francês, o que lhe facilitou ainda mais a estadia no novo país.

Chopin, tímido e reservado, destacou-se de início como concertista de piano e professor, bastante requisitado pelas famílias ricas. A imagem do gênio teve seu reflexo criado no virtuosismo ao piano e em seu aspecto doentio. Nessa época, torna-se amigo de Franz Liszt, Berlioz, Vitor Hugo e outros artistas que encantavam e transformavam a capital francesa numa referência mundial da alta cultura. Chopin, em Cachoeiro de Itapemirim, quase fez chorar.

Mal terminou a "Grande Polonaise", a pianista cerrou os punhos e emendou com o vigor sonoro de Liszt, numa simbiose de força física e controle emocional. Cada ton e semiton do compositor húngaro guarda um poder fenomenal. Conhecido, assim como Chopin, por composições para piano, a Liszt é atribuída a criação do Poema Sinfônico, composição orquestral, de um só movimento, geralmente baseado em algum poema, romance ou mesmo um quadro. Mas o que garantiu sua fama atual e sua divulgação a públicos mais amplos são as rapsódias húngaras - "Rapsódias Húngaras números 2 e 5", que, embora escritas para piano, são melhores em sua transcrição para orquestra, feitas pelo próprio Liszt. A número dois era muito utilizada em desenhos animados.

Amado pelas mulheres, admirado pelos homens, Liszt nasceu em 22 de outubro de 1811, em Haiding, Hungria. Como de praxe, seu talento precoce ao piano surpreendeu a nobreza local. Ao tentar entrar para o conservatório de Paris, foi impedido pelo diretor italiano Luigi Cherubinni por ser estrangeiro. Isso não o abalou. Passou a estudar com professores particulares. Festejado como virtuose, foi para Viena, a fim de aperfeiçoar seus conhecimentos. Estudou com Antonio Salieri e Carl Czerny, este último aluno de Beethoven.

Sua técnica ao piano é insuperável. Executa à primeira vista partituras dificílimas. Suas próprias músicas são também de extrema dificuldade. Em pouco tempo, torna-se presença constante nos meios artísticos e intelectuais da cidade-luz, locais freqüentados pelos, mais tarde, amigos Chopin, Berlioz, Schumann, Victor Hugo, Lamartine, Heinrich Heine e outros nomes expoentes do movimento Romântico, do qual Liszt participa como um dos nomes principais. A "Valsa Mephisto" executada pela pianista cachoeirense só não foi melhor porque o instrumento não agüentou a pressão harmônica exigida pela composição. Profissional, Miriam afinava o instrumento enquanto executava a peça.

Por volta das 22h00, a pianista encerrou a apresentação. O público não se moveu das cadeiras, estimulando-a a tocar mais uma peça de Chopin. No último acorde, voltou a respirar fundo, a olhar para o teto, extasiada pelos aplausos e pelo cansaço prazeroso que só a arte proporciona. Prometeu voltar. Lá se fazem mais de dois anos. Alguns poucos estão à espera.

Discografia
- CD duplo - Chopin: 4 baladas, fantasia op 49; 4 Scherzos, Barcarola op 60;
- CD - Tchaikowsky e Prokofieff: Grande Sonata em Sol M e 2ª Sonata;
- CD Piano Brasileiro (70 anos de história), de Villa Lobos à Almeida Prado;
- CD Chopin: 24 Estudos (op 10 - op 25);
- CD Beethoven: 1ª e última Sonatas, op 2 nº 1 e op 111;
- CD Villa Lobos: Bachiana nº 4, Valsa da dor e Ciclo Brasileiro;
- CD Brahms: Sonata op 5 e 2 e Rapsódias op 79;
- CD Schumann: Estudos Sinfônicos com as Variações Póstumas, Carnaval de Viena e Tocata op 7;
- CD duplo - Piano Brasileiro II (mais 70 anos de história). Compositores nascidos entre 1848 à 1917;
- CD duplo - Chopin: Polonaises e Noturnos, Andante Spianato e Grande Polonaise, Polonaise dos opus 26 ao 61, Polonaises op 71 nºs 1,2 e 3, Noturnos op 9 nºs 1 e 2, op 27 nºs 1 e 2, op 32 nº 1, op 48 nº 1 e op 55 nº 1;
- 2 CDs Duo-Mignone (com a pianista Maria Josephina Mignone): obras de Ernesto Nazareth, Zequinha de Abreu, Waldemar Henrique, com arranjos de Mignone;

Coordenação
- 4 CDs: Intérpretes e compositores brasileiros. Obras de Almeida Prado, Alberto Nepomuceno, Francisco Mignone e Villa-Lobos, interpretadas por Isis Moreira, Talitha Peres, Luiz Senise, Paulo Barcelos, entre outros.

Bruno Garschagen
Cachoeiro de Itapemirim, 14/5/2002

 

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