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Sexta-feira, 17/5/2002
Do Manhattan Connection ao Saia Justa
Julio Daio Borges

Qualquer que seja o caminho para uma programação televisiva inteligente, ele necessariamente passa pelos canais a cabo. Para quem faz crítica de tevê, é muito mais confortável apedrejar as atrações transmitidas em sinal aberto do que encarar filmes, documentários e séries de uma GNT, de um Telecine ou mesmo de um People+Arts. Nossos críticos preferem partir para o ataque intelectualmente desproporcional (perseguindo o ibope desse ou daquele mascate eletrônico) a enfrentar uma peleja de idéias que pode se revelar interessante, como a que antes norteava o Manhattan Connection e que hoje norteia o Saia Justa.

Os programas em formato de debate não são novos na tevê, mas sua receita não parece fácil de ser encontrada. Aqueles em que os debatedores variam a cada semana, como o Roda-Vida da TV Cultura, parecem depender de alguma conjuração astral que não se repete a cada edição. Pode ser que o esquema de perguntas e respostas incite a troca de idéias, pode ser que não. Pode ser que o entrevistado sinta um ambiente favorável para falar, pode ser que não. Pode ser que surjam mal-entendidos e rusgas, e pode ser que não. É impossível dispor de qualquer garantia que permita ao programa repetir o sucesso desta semana na próxima - ou mesmo impedi-lo que caia na monotonia ou na vala comum de um "jornal da tosse".

A saída, às vezes, parece estar no número fixo e reduzido de debatedores, todos com personalidades mais ou menos definidas, permitindo ao telespectador identificar-se com esse ou aquele ao longo do programa. Assim era, por exemplo, o Manhattan Connection. Uma mistura de sadismo e de curiosidade, por parte do público, aguardava o instante em que Caio Blinder defenderia suas teses e que Paulo Francis partiria celerado para o ataque, reduzindo normalmente a pó seu contumaz adversário. Mas, para a surpresa geral, nem sempre 100% da audiência torcia pelo último (em detrimento do primeiro); muitos endossavam as teses do inventor do "Instituto Paulo Francis" (com seus números tirados da cartola), dando a Blinder força para continuar como "advogado do diabo" e assegurando que o mesmo pugilato verbal se repetiria na próxima edição.

Com a morte de Francis, porém, a anarquia e a descompostura do intelectual desencantado se perderam, fazendo do Manhattan Connection um programa morno, em que todos os discursos estavam mais ou menos de acordo. Aquele princípio de instabilidade, que chacoalhava as noites de domingo e que destoava do tom oficialesco da programação no mesmo horário, de repente, cedeu lugar à alternância de convidados que, por isso mesmo, não tinham como pôr fogo na discussão. É provável também que o processo de 100 milhões de dólares contra Paulo Francis, a partir de suas declarações lá, tivesse esfriado o ânimo da direção do programa por polêmicas mais acaloradas. O fato é que a fórmula não se repetiu mais.

A formação atual do Manhattan Connection não conta nem com Paulo Francis nem com Nélson Motta, que se transferiu definitivamente para o Rio de Janeiro. No lugar deles, entraram Arnaldo Jabor e Lúcia Guimarães. O primeiro encarnou os anseios do País inteiro por um intelectual suficientemente iconoclasta mas que, ao mesmo tempo, se encaixasse no sistema. Jabor representa, paradoxalmente, a voz da independência e a voz dos donos do poder. Mais ou menos como José Simão, na Folha. Mais ou menos como Diogo Mainardi, em Veja. Já Lúcia Guimarães é a presença feminina que faltava ao programa. Jornalista competente, demonstrou muita desenvoltura diante dos colegas homens e preparou, indiretamente, o caminho para as estrelas do Saia Justa.

O Saia Justa não é, portanto, a versão feminina do Manhattan Connection. Embora a feminilidade esteja presente quase o todo tempo, ela não é usada em contraposição aos temas sisudos e sérios, discutidos em Nova York por aqueles senhores de terno. O foco está mais em como a "mulher de hoje" (esse ente indefinível) encara as transformações e os acontecimentos à sua volta, no Brasil e no mundo. E nada melhor do que mulheres representativas, cada uma no seu segmento, para enquadrar cada tema, discorrer e - quem sabe - debater sobre ele.

Assim, mantendo o paralelo com o Manhattan Connection, Mônica Waldvogel faz exatamente o papel de Lucas Mendes: apresenta, sugere as pautas, conduz a conversa e segura os ânimos (quando esses se exaltam). Aquariana da liberdade, da igualdade e da fraternidade não mostra sinais de que vá defender alguma posição com unhas e dentes (ainda que o seu testemunho seja invocado pelas companheiras, de tempos em tempos). Rita Lee, seguindo na ascendente da menor para a maior participação, insinua-se como um híbrido entre Paulo Francis e Nélson Motta. Do primeiro carrega as convicções de que não arreda o pé (como aquela acerca de estupradores e pedófilos) e do segundo, o bom humor e a disposição para o deboche (principalmente quando a temperatura começa a se elevar).

Sobram Fernanda Young e Marisa Orth. É justamente nelas que o telespectador deve depositar todas as suas esperanças, se quiser ver um debate acalorado e um pugilato de idéias. Fernanda Young é a mais jovem e, por isso mesmo, a mais agitada e irrequieta das quatro. Apesar da cabeça raspada, das tatuagens e da indumentária punk, é escritora, roteirista e defensora de instituições seculares como a família e o casamento. Por essas e por outras, já bateu de frente com Marisa Orth: atriz, cantora e entusiasta dos relacionamentos modernos (entre homens e mulheres), os mesmos que não carregam o peso da eternidade e a obrigação de dar certo. Ambas, por lidar com a palavra escrita, revelaram-se articuladas e energicamente dispostas a fazer valer seus pontos de vista. Não têm a mesma responsabilidade de uma Waldvogel (de dirigir a orquestra) e nem a serenidade de uma Rita Lee Jones (assentada e desinteressada nas querelas).

De domingo passamos então à quarta-feira. Dos engravatados, às quatro descontraídas do GNT.

Nem tudo são flores, no entanto. A ausência de regras, a falta de quadros fixos e a excessiva liberdade do Saia Justa podem estar com os seus dias contados. As atrações ao vivo andam mais monitoradas do que nunca; um escorregão que fira a ética de indivíduos ou grupos pode baixar uma portaria - e novamente se dará o "empastelamento" que fez ruir reputações, atrações e artistas em décadas de Organizações Globo. Um ranço dos anos de chumbo não permite que a subversão fique muito tempo no ar, obrigando ou a uma adequação esterilizante ou a uma morte súbita. Enquanto o Saia Justa não cai em becos sem saída ou não sofre pressões desse tipo, a televisão brasileira conta com mais uma alternativa à burrice imperante.

Julio Daio Borges
São Paulo, 17/5/2002

 

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