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Sexta-feira, 24/5/2002
Joss Whedon
Alexandre Soares Silva

Costuma-se chamar a tv de caixa de idiotas, porque é uma caixa, e porque idiotas aparecem dentro dela, e porque idiotas a adoram. Mas há idiotas que escrevem livros - se você entrar numa livraria agora, vai ver que os livros em destaque foram escritos por eles, não por Tolstoi ou Mark Twain - e há idiotas que adoram livros que foram escritos por idiotas. E no entanto ninguém chama os livros de “cadernos de idiotas”.

Isso tudo para dizer que há boas coisas na tv. Talvez você já soubesse disso- mas os críticos de tv dos jornais não sabem. Críticos de tv são como um crítico de literatura que achasse que os únicos livros que existem foram escritos por nutricionistas e socialites. Alguém que nunca tivesse ouvido falar de Suetônio, Plutarco, Homero, Dante, etc. Com completa falta de discernimento, eles parecem achar que só há programas de auditório na tv. Seria como um crítico de pintura que só conhecesse quadros de palhacinho chorando e incêndio na floresta (pessoalmente queria ver uma variação: incêndio em palhacinho chorando). Alguém devia pegar esse cara e gentilmente levá-lo para um bom museu.

Está bem, a tv é nova, e nunca produziu um Rembrandt - mas produziu pelo menos um Odilon Redon, que é David Lynch. Nunca produziu um Dante, mas produziu uma razoável cota de P.D.Jameses - pense nas pessoas que criaram “Columbo”, na década de setenta. Nunca produziu um Flaubert, mas produziu vários Graham Greenes. Na verdade, se você pensar não no Henry James que escreveu “Retrato de uma Dama”, mas naquele que escreveu “A Outra Volta do Parafuso”, e nem no Graham Greene que escreveu “O Poder e a Glória”, mas naquele que escreveu “Nosso Homem em Havana”, a tv está muito bem. O que há, como disse Fernando Pessoa sobre a beleza do binômio de Newton, é pouca gente para dar por isso.

Pois bem, quero falar agora de Joss Whedon. Acho que é um nome que merece ser conhecido; porque sinceramente acho que ele não tem menos talento do que, digamos, Balzac. Não é reconhecido como tendo tanto talento quanto Balzac por dois motivos bastante bobos: primeiro, porque escreve para a tv; segundo, porque escreve sobre vampiros. Que nada impede que um grande talento trabalhe na tv, é mais ou menos evidente, e já conversamos sobre isso. Me deixe agora tentar acabar com esse preconceito tolo contra vampiros, gigantes, súcubos, e outras criaturas da noite.

Imagine que você está contando uma piada sobre um gigante de cinco metros, que encontra o papa e a Sofia Loren no meio do mato. Nessa altura da piada você é interrompido pelo seu ouvinte, que ri de modo superior e diz: “Que bobagem, não existem gigantes de cinco metros”. Pois bem: ninguém vai negar que o seu ouvinte é um idiota - não por não acreditar em gigantes de cinco metros, mas por acreditar que uma piada com um gigante de cinco metros equivale a uma afirmação de que existem gigantes de cinco metros. Por não perceber, em suma, que o gigante é uma necessidade da narrativa.

Agora estenda a piada para um programa de tv de uma hora, e troque o humor pelo drama - faça, por exemplo, com que o gigante de cinco metros encontre no mato, ao invés do papa e da Sofia Loren, o cadáver do próprio pai. Agora imagine o mesmo ouvinte dando a mesma risadinha superior: “Que bobagem, não existem gigantes de cinco metros”. Se essa tinha sido uma interrupção estúpida da piada, continua sendo uma interrupção estúpida do drama. Um programa de tv sobre um gigante de cinco metros não equivale a uma afirmação ingênua de que existem gigantes de cinco metros. O gigante, mais uma vez, é uma necessidade da narrativa.

Exatamente como os vampiros de “Buffy, A Caça Vampiros”, e de “Angel”- as duas séries criadas, escritas e dirigidas por Joss Whedon.

Talvez eu não seja exatamente parcial (tendo tido uma liaison imaginária com a estrela da série, Sarah Michelle Gellar ), mas realmente afirmo que cada roteiro de Buffy é construído com o cuidado que o escritor russo Vladimir Nabokov exigia da alta literatura. Se duvida, veja dois ou três episódios da série (é preciso ver mais do que um para começar a entender todas as referências). Se você lê em inglês, clique aqui e leia este roteiro – na sua poltrona, como leria um livro. Alguns parágrafos atrás comparei Whedon com Balzac, mas é realmente com outro escritor que ele mais se parece em espírito – um americano, na minha opinião subvalorizado em detrimento de Norman Mailer e outros chatos: Ray Bradbury. Whedon tem a mesma capacidade que Bradbury de ser lírico e cômico e trágico ao mesmo tempo – e exatamente a mesma qualidade.

Uma das grandes virtudes das duas séries, Buffy e Angel, é a capacidade de reverter clichês. Em um episódio de Angel, por exemplo, um garotinho é possuído por um demônio; mas o garotinho é tão mau por natureza própria, que o demônio, preso naquele corpo, tem que recorrer à ajuda do herói da série para se livrar da presença maligna do garotinho. Ou em Buffy, quando Xander é dividido em duas personalidades - nenhuma das quais é maligna. Essa mesma habilidade de fugir dos clichês aparece em cada minuto de roteiro, em cada tomada, em cada linha.

Como se não bastasse, Whedon é responsável pela cena mais sexy que me lembro de ter visto na tv. Buffy está na sala de aula. Faith (Eliza Dushku) aparece do lado de fora da janela; faz o desenho de um coração no vidro, sorrindo; Buffy levanta no meio da aula e sai pela janela.

Auuuuuuuu...

Se tudo isso não serviu para convencê-lo, vou tentar um golpe baixo: confie em mim. Passei a vida lendo o que há de melhor para ser lido e reconheço, por exemplo, no humor de alguns episódios de Buffy, algo não inferior em nada ao de Cervantes em Dom Quixote; e na dramaticidade de algumas cenas algo em nada inferior à dramaticidade de “The Ordeal of Gilbert Pinfold”, de Evelyn Waugh – quando Pinfold corre para a amurada do navio e percebe, pela primeira vez, que está enlouquecendo.

Meu propósito ao escrever este texto não é aumentar a audiência de Buffy e Angel. Meu propósito é melhorar um pouquinho a qualidade dessa audiência, para além dos adolescentes retardados de sempre, que ainda não perceberam muito bem que não se trata de uma versão americana de Malhação. É tentar convencer você, leitor, que lê Borges e Kafka, a ligar a tv e acompanhar essas duas séries. E decorar o nome de Joss Whedon – que, se houver alguma justiça neste mundo sublunar, ainda vai ser lembrado em cem anos, quando ninguém se lembrar mais de nenhum dos atuais ocupantes da Academia Brasileira de Letras.

Comparei Whedon a Balzac, Ray Bradbury, Cervantes e Evelyn Waugh; cheguei até a invocar o Sagrado Nome de Nabokov; mas, por pudor, não disse o principal. O principal é isto: que me sinto feliz quando estou vendo um episódio novo de Buffy. É raro, me parece, um crítico falar disso, da própria felicidade; mas essa felicidade tem que significar alguma coisa – certamente mais do que os diagramas dos críticos científicos, e as análises sociais dos críticos sociológicos. Existe uma felicidade específica que só é criada (acompanhada?) por certos filmes, livros, programas de tv, quadros, músicas. Você já sentiu isso. Mas então por quê tão poucos críticos falam disso? Por quê? Por quê?

Um diálogo de Buffy
Ford: Oh. I thought you were just slaying a vampire.
Buffy: What? Whating a what?

(Lie To Me, Joss Whedon)

Enquanto isso, no mundo real
Enquanto isso, nos jornais, os críticos de tv continuam comentando a última idiotice da Globo. Me deixa perguntar uma coisa: você lê essa gente?

Alexandre Soares Silva
São Paulo, 24/5/2002

 

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