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Sexta-feira, 31/5/2002
Dias de Sombra e de Luz
Maria João Cantinho

"Com efeito, pergunta à geração precedente e está atento à experiência dos seus antepassados, pois nós somos de ontem e não sabemos, pois os nossos dias sobre a terra são uma sombra, não são eles que te instruirão, que te falarão e que, do seu coração, extrairão palavras?"

Job, VIII, 8.

Parece pouco dizer de Hannah Arendt que foi uma das mulheres mais carismáticas do século XX . Num tempo em que personalidades como Virginia Woolf, Gertrude Stein, Simone Weil, Simone Beauvoir e tantas outras fizeram da emancipação feminina e da afirmação da liberdade do pensamento o seu estandarte fundamental, Hannah Arendt só muito recentemente foi valorizada de forma justa. Diversos factores têm que ser avaliados, no seu conjunto, para compreender o seu tardio reconhecimento.

Podemos, no entanto, afirmar, como um dos seus melhores amigos, Hans Jonas, que ela foi, além de notável pensadora e filósofa, uma "mulher bela, dotada de magnetismo e da infalível capacidade de distinguir entre amizade viril e amizade feminina". Esta afirmação quase sibilina revela-se, porém, verdadeira. É sabido que as melhores relações que manteve, em toda a sua vida, foram com homens, sobretudo os mais notáveis pensadores e escritores da sua época: Jaspers, Heidegger, Hermann Broch, Walter Benjamin, Husserl, Adorno.

Hannah Arendt nasceu em Hanover, em 1906 e mudou-se para Könisberg em 1910. Sabe-se que teve uma infância difícil, embora a sua educação tivesse ocorrido num meio intelectual e artístico, permitindo e propiciando a tolerância e a abertura do pensamento. Filha única, sofreu a morte do seu pai aos seis anos que, antes disso, se encontrava doente e paralisado. A mãe voltou a casar com um homem que tinha, de um casamento anterior, duas filhas. Uma delas, Clara, de quem Hannah gostava muito, suicidou-se alguns anos antes da chegada de Hitler ao poder.

Inteligente e belíssima, Hannah Arendt estudou Filosofia, Teologia e Filologia Clássica nas Universidades de Marburgo, Friburgo e Heidelberg. Foi, sucessivamente, aluna de Jaspers, de Heidegger, de quem se tornou amante[1], de Bultmann e de Jaspers e, sob a direcção deste último, realizou a sua tese de Doutoramento em Filosofia: Der Gottesbegriff bei Augustin (O Conceito de Amor em Santo Agostinho).

Num universo em que o destaque era dado aos homens, Hannah Arendt afirmou-se pela sua feminilidade e judaísmo, ambas condições de adversidade. Dela, disse Heidegger que "teria, certamente, seguido com êxito uma carreira académica, apesar do facto de ser mulher"[2], nas condições em vigor antes de 1933, isto é, antes da proibição de os filósofos judeus leccionarem nas universidades alemãs, em plena ascensão do nazismo.

A afirmação de Cristhian Gauss de que ela seria a primeira a exercer uma profissão tradicionalmente reservada aos homens, em lugar de a honrar, irritou-a profundamente. Numa carta ao seu amigo, Kurt Blumenfeld, afirmou que esse papel de "mulher de excepção" lhe lembrava dolorosamente o "dos judeus de excepção". Por isso, a Hannah Arendt estaria reservado, durante grande parte da sua vida, esse estatuto de resistente solitária, agravado pelo exílio em que viveu, a partir de 1931.

Em 1929, casou com Ghünter Stern e desde essa data, ela, que confessara a Jaspers que durante toda a sua juventude fora indiferente às questões políticas, despertou dolorosamente para a questão do judaísmo[3] e da exclusão dos judeus da Alemanha. Günther Stern foi aprisionado pela Gestapo e só miraculosamente escapou à morte. Sofrendo decepções terríveis por parte de amigos seus que aderiram ao nazismo, em especial, Heidegger, Hannah Arendt partiu, em 1931, para Paris. Aí, e graças a uma bolsa de estudos, trabalhou numa biografia de Rahel Varnhagen, A Vida de uma Judia, obra que apenas será publicada em 1957.

De 1931 a 1939, Hannah Arendt residiu em Paris, convivendo com filósofos como Sartre, Raymond Aron, Walter Benjamin e escritores como Stéphan Zweig e Bertold Brecht que, com ela, partilhavam o exílio. A consciencialização da questão judaica, o sofrimento de exilada e a morte precoce de amigos, entre eles Walter Benjamin[4], levaram a que Hannah repudiasse, mais tarde e durante muitos anos, a pátria alemã, afirmando o judaísmo como pátria linguística e política. Hannah definia-se como "Mulher, judia, mas não alemã", como ela própria dizia a Blücher, que viria a ser o seu segundo marido. Ligando-se às organizações sionistas e lutando pelo nascimento e independência de Israel, Hannah Arendt tornou-se, secretária-geral no quadro da Aliyah da juventude, facilitando a imigração de crianças judias para a Palestina. De resto, a posição de Hannah será sempre a de uma preocupação simultânea pela preservação da independência e o respeito pelas dificuldades relativas à questão árabe.

No início da guerra foi internada no campo de Gurs, com os "estrangeiros de origem alemã" mas conseguiu fugir ao fim de cinco semanas, dirigindo-se a casa de amigos em Montauban, onde voltou a encontrar Heinrich Blücher, com o qual veio a casar, tendo ambos conseguido um visto e emigrado para os Estados Unidos. Um mês mais tarde, a mãe de Hannah juntar-se-ia ao grupo. Blücher teve na vida de Arendt um papel fundamental, pois foi ele que a motivou para o estudo da filosofia política.

Em 1941 iniciou o seu exílio nos Estados Unidos onde desempenhou um papel fundamental no auxílio e facilitação da vinda de amigos, igualmente desafortunados. Relativamente a Walter Benjamin, amigo que sempre protegeu, conheceu o desgosto do seu suicídio em Port-Bou, desanimado pela impossibilidade de conseguir o visto e partir, via Lisboa, para os Estados Unidos. Mais tarde, em 1971, consagrar-lhe-á um ensaio, em Homens em Tempos Sombrios, juntamente com outros vultos, igualmente admiráveis, como Bertold Brecht, Hermann Broch, Rosa Luxemburgo, etc.[5].

A partir de 1941, Hannah, que sempre se recusara, no liceu, a aprender o inglês, confessava-se embaraçada pelo facto e aprendeu-o por necessidade. Até 1945, colaborou no jornal Aufbau, onde foi contratada como editora. Essa colaboração terminará com um artigo que Arendt publicará corajosamente, intitulado A Crise do Sionismo e que marca claramente a sua posição, relativamente às facções mais radicais do sionismo.

Como ela própria o afirma na sua correspondência, "tornou-se uma espécie de escritora free lancer, a meio caminho entre o historiador e o jornalista político". As suas primeiras impressões do país são de uma intensa admiração, fascinada pela liberdade da democracia americana. Na sua correspondência afirma coisas como: "A liberdade existe mesmo na América. A República não é uma ilusão insípida(...)Além disso, as pessoas, aqui, sentem-se responsáveis pela vida pública a um ponto que nunca comprovei na Europa"[6]. No entanto, esse entusiasmo pela espontaneidade, civismo e paixão pela justiça, não altera a sua enorme lucidez quanto à falta de espiritualidade e a existência de insensibilidade perante a morte. Salienta, por outro lado, a contradição entre a liberdade política e a servidão social, o racismo contra os negros e o anti-semitismo social, ao qual os judeus reagem, isolando-se dos americanos.

Em 1944, Hannah Arendt começou a coordenar o trabalho de pesquisa da Comissão para a Reconstrução da Cultura Judaica Europeia, criada no quadro dos trabalhos da Conferência sobre os Estudos Sociais Judaicos. A partir de 1943, juntamente com Blücher, conheciam a tristemente famosa "solução final", embora ela se recusasse a acreditar.

Entre 1946 e 1948 e antes de se tornar directora da organização para a Reconstrução da Cultura Judaica, Hannah Arendt aceitou um lugar de direcção nas edições Schoken Bookes, dirigidas por Salman Shocken, que conhecera em Berlim. Nesse âmbito, travou conhecimento com T.S. Eliot e R. Jarrel, de quem viria a tornar-se, não apenas grande admiradora, como amiga.

A partir de 1948, ano da morte da sua mãe, desempenhou um papel crucial na reconstrução da cultura judaica. Nesse ano, nos Estados Unidos, a conjuntura política e social que Arendt tanto admirara, aquando da sua chegada, alterara-se radicalmente e o seu tom tornou-se bastante crítico, devido à implantação do maccarthismo e das perseguições aos comunistas. O ambiente de liberdade, que ela sentira, sofreu uma intensa deterioração, grassando um espírito de suspeita e denúncia por toda a parte, que envenenava a vida, não apenas política como social e intelectual do país. Hannah Arendt, muito marcada pelo seu passado, mas também pela nova situação, não hesitou em condenar o estado das coisas, publicando corajosamente (apenas dois anos após a sua naturalização) um artigo intitulado "Les ex-comunistes"[7]. É, aliás, esse o contexto que lhe serve de base para a redacção da sua obra As Origens do Totalitarismo[8], trabalhando ao lado dos existencialistas.

Em 1949, não escondeu o prazer de retornar à Europa, no âmbito do lugar que ocupava na organização para a Reconstrução da Cultura Judaica, nem a imensa alegria de rever a língua alemã e de reencontrar Heidegger. (Que nunca abandonará, apesar da infeliz escolha do filósofo de se conservar fiel ao nazismo.) Continuará a corresponder-se com ele até à data da sua morte.

É apenas em 1951 que Hannah Arendt é declarada cidadã americana e publica As Origens do Totalitarismo, obra apaixonada em que a autora tenta saber o que se passara, porque é que tinha acontecido e como é que tinha sido possível acontecer. De facto, ela demonstra com toda a clareza o carácter inédito do fenómeno do totalitarismo político, enquanto revelação de um mal absoluto que sustém, não apenas a causa de crimes não puníveis, como imperdoáveis. E, no ano de 1952, Hannah Arendt mantém a sua imperturbável coerência, ao romper com a política do Estado Hebreu, pelos massacres perpetrados contra o povo árabe, em Kybia.

De 1953 a 1958, a mulher que inaugurou, nas faculdades americanas, o magistério feminino da Filosofia, leccionou Filosofia e Ciências Políticas nas prestigiadas universidades de Berkeley, Princeton, Columbia e outras. A sua postura discreta revelava uma personalidade reservada e avessa aos fenómenos de mediatismo, confessando, mesmo, que tinha horror às mulheres célebres. Dessas conferências notáveis, a maioria será retomada em obras como A Crise da Cultura, A Condição do Homem Moderno e Ensaio sobre a Revolução. Nesses ensaios, Arendt critica, à vez, o Marxismo e a sociedade americana que favorece o abismo ou fosso social existente entre a pobreza social e a desmedida riqueza de certas classes sociais.

De 1958 a 1961, em que ela realiza inúmeras intervenções na Universidade de Berkeley, recorda a dolorosa ideia da obrigação de falar cinco vezes por semana para um público, contrariando a sua tendência natural. Publica numerosas obras que foram reagrupadas na introdução da Condição do Homem Moderno, publicando ainda ensaios sobre o pensamento de Tocqueville. Após terminar A Condição do Homem Moderno, em 1961, ela pedirá a um jornal semanário, o New Yorquer para cobrir o processo de Adolf Eichmann, que, se por um lado, lhe trará um imenso reconhecimento, por outro também arrastará consigo um imenso rol de dissabores. Escrevendo à Universidade Vassar, solicitando a sua dispensa, dirá: "Sei que, de uma certa maneira, assistir a esse processo é uma obrigação que devo ao meu passado[9]".

Jaspers, seu amigo de longa data, advertira-a para as consequências. De facto, ele não temia apenas o espírito ferozmente crítico e lúcido de Arendt, mas revelava igualmente a sua inquietação perante as eventuais repercussões anti-semitas que o processo corria o risco de ter sobre Israel. Com efeito, o sábio filósofo, não se enganou nas suas previsões. Os cinco artigos em que Hannah expôs as minutas do processo Eichmann em Jerusalém suscitaram contra ela uma campanha de violência extrema, que durou mais de três anos e que apenas foi comparada à questão Dreyfus. A convocação de um passado recente, atraiu sobre Hannah a indignação de inúmeros judeus. O jornal Aufbau, com o qual colaborara durante quatro anos, recusou-se a publicar fosse o que fosse escrito por ela, publicando, ao invés, uma página inteira de artigos contra ela. Corajosamente e contra toda a prudência, Hannah não renegou uma única linha do que escrevera, acrescentando a Jaspers que se o pudesse ter imaginado, "teria, sem dúvida, feito exactamente o que fiz". Teimosia ou não, o lema que orientou a vida desta mulher de inquebrantável vontade foi, sempre, o de uma convicção interior e de uma coerência que apenas obedecia a um imperativo ético. Esse imperativo, ainda que desagradasse à maioria dos rabinos que invectivavam contra ela, agradou aos estudantes de Columbia, que a receberam de forma tocante, ovacionando-a.

O resultado deste processo culminou na redacção da obra, bem controversa, intitulada: "Eichmann a Jerusalém. Rapport sur la Banalité du Mal". Nesta controversa obra, Hannah expõe as suas ideias sobre a responsabilidade dos carrascos e das suas vítimas, sobre a responsabilidade, também, dos comités judaicos.

Em 1968, o ano da revolta estudantil e das grandes mutações sócio-políticas, torna-se professora de Filosofia Política na New School for Social Research, em Nova Yorque, cargo que ocupará até 1975, o ano da sua morte. O pessimismo grassa nas fileiras de uma Europa que se apresenta em toda a decadência, numa América cheia de feridas e cicatrizes da guerra do Vietname. Dessa época ressaltam os mais amargos escritos de Hannah, como seria de esperar, resultantes da sua lucidez. Datam dessa época, também, a sua obra A Crise da Cultura, um conjunto de oito exercícios de pensamento político dedicados ao seu marido e professor Blücher, em que Arendt se interroga como é que é possível pensar na "brecha" aberta pelo desaparecimento da tradição entre o passado e o futuro. Nunca terminará o seu último livro A Vida do Espírito, obra cujo título traduz as orientações novas do seu pensamento para uma análise mais aprofundada da metafísica, o domínio privilegiado dos filósofos.

Quatro meses após o derradeiro encontro com Heidegger, no dia 4 de Dezembro de 1975, Hannah Arendt, ela própria uma mulher fulminante, não resiste a uma crise cardíaca que a arrebatou perante os seus amigos, durante a tarde. Tinha sessenta e nove anos e antecedeu a morte de Heidegger um ano. O seu corpo foi cremado em Ferncliff, no Estado de Nova Iorque.

Gunther Gaus, numa entrevista televisiva, difundida na televisão alemã em 28 de Outubro de 1964, perguntou-lhe se o problema da emancipação feminina se tinha posto no seu caso. Ela respondeu simplesmente, sem qualquer receio de parecer antiquada: "Sempre pensei que existiam determinadas actividades que não convinham às mulheres, que não lhes ficavam bem, por assim dizer. Dar ordens não fica bem a uma mulher e, por isso, ela deve esforçar-se por evitar tais situações se, entretanto, quiser conservar as suas qualidades femininas. Não sei se tenho razão ou não. Seja como for, pelo meu lado, mais ou menos inconscientemente, conformei-me com essa opinião. O problema em si, para mim, pessoalmente, não desempenhou qualquer papel. Na realidade, fiz simplesmente aquilo que tinha vontade de fazer."

Não será esta afirmação a mais radical expressão de liberdade?

Notas

[1] Recomenda-se a leitura de: Catherine Clément, "O Último Encontro" (Ed. Portuguesa ASA)

[2] V. Correspondência entre Heidegger e Hannah Arendt, Hannah Arendt-Martin Heidegger Correspondencia 1925-1975, editora Herder, 2000, Briefe 1925 bis 1975 und andere Zeugnisse, Vittorio Klostermann Gmbh, Francfort del Meno, 1999. Carta de 3 de Novembro de 1959.

[3] Numa célebre troca de cartas com com Gershom Scholem, em Fidelité et Utopie, p. 213/218, Hannah recorda que na sua juventude não se interessava nem pela história nem pela política. A partir de 1933, a sua atitude muda radicalmente, como seria de esperar.

[4] É graças ao empenhamento de Hannah e aos seus esforços junto de Theodor Adorno, que o valor de Walter Benjamin será reconhecido, após a sua morte.

[5] Esse admirável ensaio encontra-se traduzido e publicado na editora Relógio de Água.

[6] Carta nš 34, de 29 de Janeiro de 1946.

[7] in Commonweal, 57/24, 20 de Março de 1953, artigo que é retomado no Washington Post de 31 de Julho de 1953.

[8] Recentemente publicada na Relógio de Água, juntamente com outras obras como, por exemplo, A Condição Humana.

[9] Carta de 2 de Janeiro de 1961.

Nota do Editor

Texto publicado originalmente na edição de abril de 2002 da Revista Storm, editada por Helena Vasconcelos em Portugal. (Foi mantida intacta também a grafia original.)

Maria João Cantinho
Lisboa, 31/5/2002

 

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