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Quinta-feira, 13/6/2002
Um Publicitário
Evandro Ferreira

Gostaria de comentar aqui um discurso do publicitário Nizan Guanaes para uma turma de formandos da FAAP. Recebi o dito por e-mail e não resisti.

Penso que o Nizan Guanaes é apenas uma pessoa que entende um pouco de retórica e sabe esbarrar em questões importantes, e nada mais. Quando parece que falou uma coisa sábia, é só porque "sentiu", "fisgou" a coisa. E então "esbarra" nela. Ele é um típico publicitário: fisga uma idéia, explora um pouco e cospe fora. Por isso costumo dizer que, para ser publicitário e parecer sábio aos olhos dos outros de seu meio, tudo de que um indivíduo necessita é ter um certo bom senso. Mas vamos aos exemplos.

O texto consiste em uma série de conselhos e é uma espécie de apologia do sucesso e da realizacão pessoal, no que não vejo nada de reprovável, mas apenas de superficial. Sobre o trabalho, há um trecho particularmente interessante: "Eu digo: trabalhem, trabalhem, trabalhem. De 8 às 12, de 12 às 8 e mais se for preciso. Trabalho não mata. Ocupa o tempo. Evita o ócio, que é a morada do demônio, e constrói prodígios. O Brasil, este país de malandros e espertos, da vantagem em tudo, tem muito que aprender com aqueles trouxas dos japoneses. Porque aqueles trouxas japoneses que trabalham de sol a sol construíram, em menos de 50 anos, a 2ª maior megapotência do planeta. Enquanto nós, os espertos, construímos uma das maiores impotências do trabalho."

Sinto-me meio mal ao criticar isso, pois sei que o Brasil está atrasado porque ninguém valoriza o empreendedorismo, mas apenas a "luta pelo social" e o mamar nas tetas do Estado. Mas é preciso dizer que ele reduz o trabalho ao nível "prático", sendo que também existe o trabalho teórico. E essa omissão revela um típico preconceito dos publicitários quanto ao "intelectualismo". Um preconceito tão prejudicial quanto o que os intelectuais têm com relação ao empreendedorismo. Muitos dos grandes pensadores nunca trabalharam, naquele sentido. Mas escreveram muitos livros, o que também é "empreender", ou produzir.

A necessidade de impor o trabalho duro como um valor absoluto reflete, no caso de um publicitário como Guanaes, um interesse em manter o esquema de exploração das agências de publicidade brasileiras, onde um diretor de arte pode chegar a trabalhar até as 3 da madrugada e ainda ficar feliz com o "sucesso" que está fazendo. Trabalhar de 8 à meia-noite não é um valor indiscutível. Uma pessoa pode trabalhar de 10 às 18 horas (como nas agências dos EUA, por exemplo) e isso não a impede de se realizar. Ou pode não trabalhar nem um segundo, mas conhecer muitas pessoas e fazer muitas coisas diferentes, que não são "trabalho".

Então, existe aí um vazio teórico: empreender é próprio do ser-humano (Ludwig von Mises já dizia que a economia é a "ação humana") e deve ser estimulado, mas o Nizan, e os publicitários em geral, recorrem aos meios "neurolinguísticos" para fazê-lo. Ao invés de buscar motivos honestos para defender o trabalho, preferem deixar o estudante com o cérebro programado para achar que empreender é sinônimo de trabalhar 12 horas por dia. Pode não ser. O trabalho não é um valor absoluto. Muito menos em excesso. Não é só através do trabalho que o homem pode se realizar, ou empreender. O que não quer dizer, é claro, que haja algo de errado em alguém se realizar por meio do trabalho. Mas, como estou tentando mostrar, a coisa é mais complicada e ele só esbarra nela, talvez para não correr o risco de que os futuros publicitários pensem demais no assunto.

E aqui entra um fato empírico: uma boa quantidade de pessoas, quando pensa no assunto, passa a não gostar de ter que trabalhar tanto. Isso é um sinal razoável de que trabalhar em excesso não é um valor razoável. Funciona para uns e não para outros. Mas a programação neurolinguística só funciona na base da absolutização: a pessoa "programada" é um autômato que trabalha com os valores de forma absoluta. E dessa forma ela pode aguentar trabalhar tanto e ainda ficar extremamente feliz. Mais feliz ainda fica o dono da agência, que paga metade do salário de um estrangeiro, por um funcionário que trabalha quase o dobro do tempo.

Passemos a outro trecho: "Trabalhe! Muitos de seus colegas dirão que você está perdendo sua vida, porque você vai trabalhar enquanto eles veraneiam. Porque você vai trabalhar, enquanto eles vão ao mesmo bar da semana anterior, conversar as mesmas conversas, mas o tempo, que é mesmo o senhor da razão, vai bendizer o fruto do seu esforço, e só o trabalho o leva a conhecer pessoas e mundos que os acomodados não conhecerão".

Aqui encontramos outro pseudo-argumento para defender o trabalho excessivo. Ele diz que os seus amigos vão ao mesmo bar da semana passada. Isso quer dizer que eles são pobres de espírito e sem criatividade e você não deve deixar de trabalhar para sair com eles, porque não estaria ganhando nada com isso. O fato de seus amigos que trabalham menos serem pobres de espírito, entretanto, não prova que trabalhar muito traz riqueza espiritual. A conclusão simplesmente não segue da premissa. Pense bem, você pode tirar mais férias que o seu amigo publicitário trabalhador e usar suas férias para ir a lugares a que nunca foi antes, ler livros e assistir a bons filmes. A pobreza de espírito é da pessoa e não do ócio. O ócio não tem virtudes - ou vícios - inerentes. O indivíduo é que tem. Cada um pode usar o seu ócio da forma que quiser: bem ou mal.

Quanto à afirmação de que só o trabalho leva alguém a conhecer pessoas e mundos que os acomodados não conhecerão, creio que o mesmo pode ser afirmado de muitas outras coisas. Só para citar um exemplo, eu poderia dizer que só o lazer o leva a conhecer pessoas e mundos que os que estão trancados em suas salas trabalhando não verão. Esta seria uma afirmacão perfeitamente válida, embora inversa. E, uma vez que a idéia inversa é tão válida quanto a primeira, posso facilmente concluir que nenhuma das duas é uma lei ou verdade absoluta. Não se pode excluir uma mediante a afirmação da outra. O que temos aqui é uma mera verificação empírica de que no trabalho nós conhecemos muitas pessoas que não conheceríamos se ficássemos em casa isolados. Mas e se não ficarmos em casa isolados? E se sairmos ou fizermos cursos ou viagens de turismo? E se mandarmos e-mails e conversarmos com pessoas na Internet e fizermos amizade com elas e depois sairmos com elas para um bar diferente do da semana passada? Tudo que se pode afirmar é que no ambiente de trabalho podemos conhecer pessoas e fazer amizades mais facilmente, por causa do convívio diário. E, como a maioria das pessoas trabalha, pode ser que quem não trabalhe - ao menos nos moldes convencionais - tenha certa dificuldade em fazer amizades. É absurdo, no entanto, usar isso como um motivo para trabalhar 12 horas por dia.

Mais um trecho, desta vez defendendo a boa e (nem tão) velha cidadania: "pensar em todos é a melhor maneira de pensar em si". Isso é uma bobagem. A melhor maneira de pensar em si é pensar em si. Logicamente que não devemos deixar de pensar nos outros. Mas o que ele tenta fazer é escapar da obviedade de que eu sou mais importante para mim do que os outros. É uma forma que ele encontra de compactuar com o lugar-comum da solidariedade acima de tudo.

Se os outros deixassem de existir nesse exato momento, eu ainda poderia continuar existindo. Mas se eu deixasse de existir, eu não poderia continuar existindo, certo? Logo, eu sou mais importante para mim do que os outros. Por mais anti-socialista que isso possa parecer. Aqui, mais uma vez, é uma questão de achar o motivo certo. Existe um motivo para que eu pense no bem dos outros. Mas esse motivo não sou eu, nem mesmo um pragmático "bem-estar social". Não penso nos outros porque essa é a melhor maneira de pensar em mim. Penso nos outros porque tenho bondade em meu coração e caridade. E sei amar.

Outra afirmação: "já vi grandes livros e filmes sobre a tristeza, a tragédia, o fracasso. Mas ninguém narra o ócio, a acomodação, o não fazer, o remanso".

Que mentira! Basta citar "A montanha mágica", de Thomas Mann, para desmentir isso. Ou então "A fúria do corpo", de João Gilberto Noll, que descreve as sensações alucinantes de um mendigo vagabundo e constrói uma verdadeira tempestade linguística, tudo a partir do monótono cotidiano de um errante morto de fome. Narra-se o que se quiser. A literatura não tem limites. A afirmativa é pura desinformação. O estudante recém-formado e semi-letrado vai acreditar no que seu herói Nizan afirma - já que nunca leu senão os livros do vestibular e nada entende de literatura - e vai continuar acreditando que deve viver intensamente (leia-se: trabalhando 12 horas por dia), segundo a afirmação: "colabore com seu biógrafo".

Acontece que para o publicitário Nizan, ócio é sinônimo de tédio. E, segundo ele próprio, é preferível o fracasso ao tédio, afirmação esta com que concordo plenamente, embora não concorde que ócio seja igual a tédio. Ele cita ainda uma passagem da Bíblia que diz qualquer coisa como: "seja quente ou seja frio, não seja morno que eu te vomito".

Então vamos por partes. Primeiramente, pessoas que só não querem trabalhar o tempo inteiro não são exatamente ociosas. Além disso, ser morno também é um direito de qualquer um. Logicamente o ser humano tem possibilidades infinitas e uma capacidade de fazer tantas coisas, que aquele que nada faz é, de certo modo, desprezível. Mas o que é fazer nada? Será que existe em algum lugar do mundo esse ser humano que não faz nada? E se eu quiser ficar em casa o tempo inteiro, como disse um articulista certa vez, lendo dezenas de livros e me realizar plenamente com isso? Que argumentos serviriam para provar que estou errado? O fato de que muitos seres humanos são medíocres também não serve de argumento em prol do trabalho. Tenho um amigo que é funcionário público, faz coisas monótonas - e outras nem tanto - das 9 às 18 horas e depois do trabalho costuma ler, tomar um chopp e conversar com os amigos. Tenho mais assuntos interessantes para conversar com ele do que com outro amigo publicitário que tenho, que fica fazendo piadinhas, não tem nada na cabeça além de frases feitas, mas trabalha até as 10 da noite e faz muito sucesso com seus anúncios. Conhece muito mais pessoas do que eu, todas elas iguais a ele, amigos de ocasião, que só servem para ir a uma boate e dançar um pouco.

Tudo isso é lamentável. Porque um publicitário como o Nizan Guanaes sabe que o Brasil é um país atrasado porque muita gente não quer saber de batalhar e só fica reclamando (principalmente os intelectuais). Mas apela para os motivos errados quando quer estimular as pessoas a empreender e a não ter preconceito com o dinheiro e o capitalismo. Não vou entrar aqui no mérito da questão. Mas tenho como uma obviedade o fato de que os motivos precisam ser mais elevados.

Seria ingenuidade afirmar que um discurso de formatura como esse deveria ser mais profundo. O tempo e a circunstância não permitem análises mais complexas. Entretanto, é sempre possível falar a verdade de forma honesta e em poucas palavras. E se um publicitário não o faz, não há nada de surpreendente nisso, ao menos no contexto brasileiro. Usei trechos do discurso apenas para mostrar um pouco da mentalidade de nossos publicitários. O leitor, se quiser conhecer um pouco mais dessa mentalidade, pode comparecer a qualquer palestra sobre criação publicitária e não se arrependerá do exercício antropológico.

O empreendedorismo é algo que precisa ser fundado na liberdade humana, e não em pseudo-valores como sucesso, trabalho, bem-estar social e progresso material.

Evandro Ferreira
Belo Horizonte, 13/6/2002

 

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